O possível recuo na tramitação do projeto de lei que equipara o aborto ao crime de homicídio revela o quanto a preocupação com questões de gênero e combate ao machismo está longe de ser uma pauta que, de fato, mobiliza parlamentares brasileiros. Em meio às manifestações que ganharam as ruas e as redes sociais nos últimos dias, deputados e senadores falam em desacelerar a votação do PL temendo, na verdade, um forte desgaste político. Nas declarações da maioria desses políticos, parece não haver indignação, ou no mínimo um desconforto, com a possibilidade de perda de um direito adquirido ou de ocorrência de decisões judiciais polêmicas – como a da vítima submetida ao procedimento receber uma pena maior do que a de quem a violentou.


Declarações do autor do PL, o deputado Sóstenes Cavalcante, evidenciam a verdadeira motivação. O parlamentar diz que não tem pretensão de mexer no texto e que não há pressa para a votação da proposta. Há “o ano todo” para que ela seja votada, segundo ele, já que o presidente da Câmara, Arthur Lira, assumiu o “compromisso” de aprovação “até o último dia do seu mandato”. Se há uma despreocupação com o tempo, o que justificaria a aprovação do requerimento de urgência do projeto de lei em votação relâmpago, na última quarta-feira, dificultando um debate amplo sobre o tema?


Dedicado a garantir que seu substituto seja um aliado, Lira se transformou no principal alvo das manifestações contra o PL e tratou de anunciar que vai desacelerar a tramitação, assegurando que a relatora do projeto será alguém da bancada feminina da “ala moderada”. Também na tentativa de amenizar os ânimos, o deputado alegou que a população desconhece o processo legislativo, tendo um entendimento de urgência que não corresponde ao processo real. Não parece, porém, necessário muito conhecimento sobre os meandros do Congresso para questionar se 24 segundos são suficientes para decidir o andamento de uma proposta com tamanho impacto social.


Das 74.930 vítimas de estupro no Brasil em 2022, 75% tinham menos de 14 anos, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Em 2020, foram registrados cerca de 17.500 partos de meninas com 10 a 14 anos no Brasil, indicam dados mais recentes do Ministério da Saúde. No comando da pasta, Nísia Trindade afirmou que o PL é “injustificável e desumano”, seguindo uma declaração do presidente Lula, também no sábado, classificando o projeto como uma “insanidade”. O governo, aliás, também mudou o tom acerca do PL antiaborto. Abriu mão de um estratégico silêncio depois das repercussões negativas dentro e fora do campo político, incluindo acusações de condescendência na votação relâmpago.


Há, agora, um compromisso em não mudar a legislação atual sobre o aborto, afirmou, ontem, o ministro da Secretaria de Relações Institucionais, Alexandre Padilha. Não é suficiente, assim como a promessa de arrefecer o polêmico projeto de lei que, segundo parecer da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), tem “linguagem punitiva, depreciativa e cruel”, além de ser inconstitucional. O que se espera dos parlamentares e demais políticos é um fazer democrático nas instâncias do poder, é propor e aprovar ideias que não ameacem direitos fundamentais nem sejam contaminadas por dogmas religiosos, fake news ou qualquer outra artimanha que desacelere um caminhar da sociedade rumo a relações mais justas e igualitárias. Esse, sim, é um processo que requer urgência. 

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