Lucas Reis,
Doutor em Big Data aplicado à Comunicação, pesquisador associado do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT-DD), fundador da Zygon Adtech e da Digital IsCool, presidente da Associação Baiana do Mercado Publicitário (ABMP) e vice-presidente de Operações do IAB Brasil
Ao final de 2024, mais de 60 países terão realizado eleições ao redor do mundo, no que será um dos maiores ciclos eleitorais da história. Realizar votações em países tão diferentes como EUA, Rússia, Índia, Venezuela e Brasil já seria algo complexo, e, neste ano, um fator adicionou complexidade a este cenário: o uso da Inteligência Artificial pelas campanhas eleitorais.
O ano começou com diferentes entidades expressando preocupação com os riscos de o uso de IA gerar uma onda de fake news capaz de comprometer os processos eleitorais. Por isso, o TSE publicou uma resolução bastante restritiva sobre o uso de Inteligência Artificial na propaganda eleitoral. Entretanto, embora essa preocupação seja legítima e relevante, a IA tem diversos outros usos para as campanhas nas eleições.
Recentemente, escrevi com os pesquisadores Nina Santos (doutora em Comunicação) e Matheus Soares (doutorando em Comunicação), um artigo mapeando os usos da Inteligência Artificial na comunicação eleitoral. Em nossa pesquisa, usamos a tipologia dos autores alemães Andreas Jungherr e Ralph Schroeder, que apontam 3 linhas de uso da IA na propaganda eleitoral: para detectar o interesse do público; gerar conteúdos; e interagir com as pessoas.
A resolução do TSE para 2024 é textual em restringir os dois últimos casos, mas não faz menção ao uso para o primeiro. E essa utilização de bastidor, menos percebida pelo público e pelos reguladores, é extremamente potente.
O poder real da IA nas eleições está na sua capacidade de analisar vastas quantidades de dados para identificar padrões e gerar insights que basearão estratégias de campanha mais precisas e personalizadas. Técnicas como os RAGs (Retrieval-Augmented Generation) permitem que as campanhas usem modelos de IA, como o ChatGPT ou o Gemini, alimentados com dados próprios (pesquisas quantitativas, qualitativas, performance dos posts nos perfis dos candidatos, publicações dos eleitores, cobertura da imprensa etc.) e, assim, possam entregar análises e sugestões que podem ser usadas para segmentar mensagens de forma mais eficaz, indicando qual conteúdo produzir, para quem direcionar e quando entender que o objetivo foi alcançado.
Por exemplo, a IA pode identificar o aumento de comentários sobre segurança pública, e conectar isso com a conclusão de uma pesquisa qualitativa, para sugerir qual conteúdo o candidato deveria publicar para ser bem recebido neste momento.
Esse uso da IA parte da premissa de que é preciso entender como o público eleitor está compreendendo o contexto corrente. É preciso detectar o zeitgeist e produzir conteúdos aderentes a eles. Neste sentido, citamos o intelectual britânico de Stuart Hall, para quem a recepção das mensagens é um processo ativo de decodificação, onde o público faz interpretações de acordo com seu contexto cultural e pessoal. Isso significa que a mesma mensagem pode ser recebida de maneiras diferentes por diferentes grupos de pessoas. A IA tem ajudado a detectar como cada público está compreendendo cada mensagem e, a partir disso, aponta como as campanhas podem adaptar suas estratégias para garantir que suas mensagens sejam decodificadas de forma a maximizar seu impacto persuasivo.
Todo esse poder exige imensa responsabilidade de quem o utiliza. Hoje, entretanto, não há legislação geral ou eleitoral que estabeleça balizas do que pode ou não ser feito.
Enquanto a discussão pública se concentrou nos perigos da IA em criar desinformação, o campo da comunicação eleitoral tem se dedicado a conhecer e explorar seu potencial na análise e direcionamento de dados para campanhas. Ao colocar o foco na compreensão profunda dos eleitores e na criação de mensagens com maior poder de convencimento, a IA já está sendo usada como uma ferramenta relevante para os estrategistas políticos. Seu uso torna a comunicação mais científica e eficiente, mas a falta de atenção dos reguladores a estes casos de uso cria uma zona cinzenta em que utilizações maliciosas podem se tornar reais.