Ainda capital federal, o Rio de Janeiro foi palco, no início de novembro de 1904, de uma reação popular que marcou a história da saúde pública brasileira. A população – de operários a intelectuais – tomou as ruas da cidade para protestar contra a implementação da vacina obrigatória contra a varíola. Foram cinco dias de confrontos violentos com a polícia, quase mil presos, 30 mortos, e a decisão do presidente Rodrigues Alves de recuar com a medida de imunização em massa.

Exatamente 120 anos depois da Revolta da Vacina, o governo ainda se vê diante do desafio de enfrentar o negacionismo sanitário. Mas, desta vez, com um desfecho diferente: na terça-feira, o país recuperou o status de território livre do sarampo. A conquista é de se comemorar, mas também evidencia o quanto movimentos que impactam a saúde coletiva seguem fortes e repaginados, demandando das autoridades medidas mais modernas e eficazes de enfrentamento.

A recertificação, feita pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), encerra um período de cinco anos de retomada de casos da doença altamente contagiosa justamente pela queda nas taxas de vacinação. A cobertura da primeira dose da tríplice viral, que protege contra caxumba, rubéola e sarampo, caiu de 95% em 2016 para 74% em 2021, contribuindo para a retomada de surtos de sarampo principalmente em Amazonas, Roraima e São Paulo. O último registro da doença no Brasil ocorreu em junho de 2022, no Amapá.

Ao anunciar a retomada do status sanitário, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, ressaltou que o país não pode “descansar” diante da conquista. Jarbas Barbosa, diretor da Opas, lembrou que o “sarampo continua a existir no mundo”. Daí a necessidade de manter “a vacinação elevada e homogênea e a vigilância sensível”. Para cumprir o protocolo sugerido, porém, é preciso que os imunizantes estejam disponíveis.

Levantamento recente da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) mostra que falta a tetraviral em quase 10% dos municípios do país. A fórmula protege contra as três doenças abarcadas pela tríplice viral, além da varicela. O problema se repete com outras enfermidades. Não se encontra vacina para proteger as crianças contra o vírus da Covid-19 – responsável por uma das pandemias mais mortais da humanidade – em quase 15% dos municípios. De forma geral, 64,7% deles enfrentam algum problema de falta de imunizantes.

Esse mesmo país que carece de vacinas também as desperdiça. Levantamento feito pelo jornal O Globo a partir de dados oficiais mostra que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva deixou vencer 58,7 milhões de imunizantes desde 2023, um aumento de 22% em relação a toda a gestão de Jair Bolsonaro, que não mediu esforços para colocar em xeque a importância de imunizantes. O Ministério da Saúde credita parte do prejuízo a doses recebidas do governo passado. Ainda assim, tamanho rombo não ocorre sem a existência de falhas de planejamento e gestão nas administrações vigentes. Tanto que a própria pasta admite estar fazendo inovações na distribuição das fórmulas.

As mudanças são urgentes. Os avanços na imunização obtidos pelo governo atual não serão mantidos apenas com estratégias de combate ao movimento antivacina. A população precisa estar certa da eficácia das fórmulas, mas também de que as terá disponíveis quando chegar aos postos e de que seu dinheiro está sendo bem empregado em prol da saúde coletiva. Em 1908, quatro anos após o recuo de Rodrigues Alves, uma intensa epidemia de varíola atingiu o Rio de Janeiro, resultando em mais de 6 mil mortes. Não houve uma nova revolta. Ao contrário, as pessoas foram se vacinar. Cento e dezesseis anos depois, é inadmissível que esse tipo de demanda não seja atendida.