A Polícia Federal (PF) bateu à porta ontem para prender quatro integrantes do Exército e um servidor da própria PF, acusados de planejar um golpe para matar o presidente Lula (PT) e seu vice Geraldo Alckmin (PSB), além do ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes. A estratégia, planejada por meio de grupos de WhatsApp e articulada a partir de diferentes frentes, teve sua gênese na casa do general Braga Netto, candidato a vice na chapa do PL em 2022, ao lado de Jair Bolsonaro.

Uma das ideias envolvia envenenamentos das três autoridades citadas, portanto sem qualquer chance de defesa. No caso do presidente Lula, a PF informa que os quatro militares se aproveitariam das condições de saúde debilitadas do petista para envenená-lo durante consultas hospitalares de rotina.

O escândalo choca a sociedade e o Estado Democrático de Direito, mas não surpreende os livros de história. O país ainda enfrenta as feridas abertas pelo golpe militar de 1964. Ainda que a Comissão da Verdade, extinta em 2014, tenha prestado um serviço valoroso à democracia brasileira ao revisitar crimes contra os direitos humanos nunca solucionados pelo Estado, a Lei da Anistia que perdura desde 1979 escancara uma herança maldita ainda viva entre brasileiros e brasileiras.

Diante de tal cenário, vem em hora ainda mais essencial o sucesso do longa-metragem “Ainda estou aqui”, em cartaz na maioria das salas de cinema brasileiras. O filme dirigido por Walter Salles conta a história de Eunice Paiva (Fernanda Torres), viúva do ex-deputado Rubens Paiva (Selton Mello), sequestrado e assassinado pela ditadura militar em 1971.

A trama, ainda que exija compreensão sobre a história do Brasil para seu entendimento mais completo, emociona o público ao redor do mundo por retratar a (quase) destruição de uma família unida e feliz, a partir de um dos crimes mais conhecidos da ditadura militar brasileira. Após anos de luta de Eunice, o Brasil só atestou a morte de Rubens Paiva pela ditadura em 1996, a partir da Lei dos Desaparecidos Políticos, sancionada por Fernando Henrique Cardoso no ano anterior.

A operação da PF ontem e a tragédia da família Paiva andam de mãos dadas quando se olha para a história do Brasil. O planejado golpe tem o nome de Punhal Verde e Amarelo. Fatos se cruzam com outras conspirações e assassinatos planejados e executados sob a mira das Forças Armadas.

O factual da semana confia às autoridades brasileiras uma nova oportunidade de dar a esses crimes os pesos que eles precisam ter. Notas de repúdio ou condenações via rede social são insuficientes para conter quem tem apreço pela opressão. O mesmo vale para declarações em microfones da imprensa ou em eventos públicos.

Ao mesmo tempo em que os livros e documentos da ditadura deixam claro que o plano para matar o presidente da República, seu vice e um ministro do STF tem explicações históricas, o Estado brasileiro já mostrou, em outras oportunidades, fraqueza ao punir quem odeia a democracia. O próprio fato de integrantes dos ataques de 8 de janeiro de 2023 terem se candidatado neste ano, ainda que nenhum deles tenha sido eleito, prova que se trata de uma nação quase sem memória.

“Ainda estou aqui”, ao dar ao cinema brasileiro a chance de uma indicação ao Oscar, acerta não só ao retratar a tragédia causada pela ditadura pela ótica da viúva Eunice – diante do contumaz esquecimento da figura da mulher na resistência – mas também por trazer a temática tão necessária a partir do viés da perda familiar. É preciso (re)lembrar, com nós na garganta, para não repetir os erros do passado.