Guilherme Ribeiro
Cirurgião plástico, formado em Medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica
A pergunta chegou despretensiosa, enquanto tomávamos café numa dessas manhãs em que o dia parece ainda se espreguiçar. “Amor, o que você ouviu no consultório, esse ano, que mais te marcou?” Estava distraído, mexendo na xícara, e só consegui responder: “Não sei, preciso pensar, Lizza”. Mas a pergunta ficou. Acompanhei cada gole de café com lembranças embaralhadas, e, no caminho do hospital, ela se tornou um mantra. O que foi que ouvi? O que me marcou? Entre semáforos e ruas conhecidas, uma memória começou a ganhar forma.
Lembrei de uma paciente jovem. Cheia de vida, mas já carregava o peso invisível das expectativas alheias. Queria colocar próteses nos seios. Não porque não gostasse de como eles eram, mas porque acreditava que isso mudaria os olhares que recebia, principalmente dos homens. “Doutor, você não tem ideia da pressão que nós, mulheres, sofremos”, disse ela, com um sorriso tímido que escondia a gravidade de suas palavras. E eu me perguntei: “Como chegamos aqui? Quando foi que a beleza deixou de ser arte e virou fardo?”.
Mais alguns quarteirões, e outra história veio à mente. Dessa vez, era a paciente que tinha sido mãe recentemente. Exausta, mas determinada, ela queria “voltar ao corpo de antes”. Disse que era cedo, que seu corpo, assim como ela, precisava de tempo para se reencontrar. Mas ela me respondeu com lágrimas nos olhos: “Não sei se meu casamento dura até lá”.
Essa resposta me desarmou. Não era sobre o corpo, afinal. Era sobre a relação. Sobre como o corpo, que em vez de ser dela, parecia ter se tornado uma moeda de troca em um contrato tácito com o mundo.
Cheguei ao hospital ainda mergulhado nesses pensamentos. Luiza, a primeira paciente daquele dia, me esperava na sala pré-cirúrgica, com um sorriso que iluminava o ambiente. Ela estava prestes a fazer o explante das próteses mamárias que tinha colocado anos antes. “Doutor, hoje vou me reencontrar com quem nunca quis deixar de ser!”, disse. Fiquei intrigado. Perguntei o que ela queria dizer. E Luiza, com a segurança de quem já fez as pazes consigo, respondeu: “Coloquei as próteses porque achei que era o que faltava pra eu ser bonita. Que bobagem. Não faltava nada. O que faltava era eu me amar”.
E ali estava a resposta para a pergunta daquela manhã. Não foi apenas o que ouvi em 2024, mas o que entendi. O peso da pressão estética sobre as mulheres não é algo novo, mas o ano trouxe algo diferente: a resistência que, até então, estava ali, escondida nas entrelinhas, agora ganhou corpo, som e forma. Mulheres como Luiza começaram a dizer “chega”, e não foi um grito de desespero, mas uma afirmação serena, decidida: “Agora sou eu quem escolho”.
Essas histórias me ensinaram que a beleza verdadeira não é um destino, mas uma jornada de aceitação. Que o papel de um cirurgião plástico não é apenas esculpir corpos, mas ouvir almas.
E, se você me perguntar o que aprendi em 2024, eu diria, agora, sem nem precisar pensar: aprendi que há força em cada mulher que diz “que bobagem!” e coragem em cada uma que decide ser, simplesmente, quem é.