Fabrícia Miranda

Roteirista, pesquisadora das favelas cariocas, moradora do Complexo de Manguinhos e autora do livro “Codinome Beija-flor: Noite Escura”

As favelas aparecem nos veículos de comunicação como local de miséria, exclusão e estigmatização, mas também de resistência cultural e diversidade. Sua topologia polifônica pode ser comparada a uma Babel, com milhares de entradas e incontáveis caminhos. Pessoas sobrevivendo em meio à miséria, com falta de quase tudo. Massa humana esquecida pelo Estado que vai à luta e que ainda consegue se divertir em meio à violência e pobreza.


Elas surgiram devido à falta de política de habitação para os ex-escravos. A “liberdade” da população negra no Império não lhes garantiu o básico para a sobrevivência. O Estado não os indenizou, restando-lhes somente subirem os morros e criarem favelas, sendo a primeira constituída no século 19, no centro do Rio de Janeiro, conhecida como Morro da Favela, hoje Morro da Providência.


Agora já se tornou lugar-comum: não param de crescer e as grandes cidades estão cada vez mais violentas. A esse aspecto soma-se que essas regiões encravadas por toda a cidade criam suas próprias leis, sua linguagem, maneira de vestir e de andar, servindo não apenas de elemento estigmatizado, mas tornando-se influente na indústria cultural que vai da moda à música.


Se há o medo que esses territórios suscitam na população das cidades em geral, há, como em tudo que é proibido situando-se às margens do que é oficial e “normal”, a formação do fascínio pelos elementos sociais de destaque nesses contextos. O próprio capitalismo que tudo transforma em mercadoria, e, portanto, em lucro, vem construindo um mercado cultural inspirado nos contextos das favelas.


Esse poder crescente do crime e da cultura das favelas pode sugerir que a fragmentação do tráfico provoca questionamentos em relação à ocupação e dominação dos espaços das comunidades no Rio de Janeiro pelos criminosos tidos como exemplos do poder local. Seriam elas: “favelas ou principados?”.


Essa diversidade suscita nos moradores das favelas uma visão de mundo na qual é patente a hierarquia constitutiva de seu contexto sociocultural particular. Principalmente em relação a quem manda, comanda e desmanda na região, a autoridade que chefia o tráfico (o “chefe’; o “dono”), e, por conseguinte, a vida das pessoas nas favelas sob seu domínio.


Mas esse momento de incerteza política, aumento da corrupção e insegurança social, instabilidade das favelas devido às fragmentações por parte do tráfico e à criação de organizações criminosas provoca um tipo de dominação na qual as “benesses” engendradas de forma paralela às estruturas oficiais reforça as próprias estruturas de dominação criadas e mantidas pelas autoridades do crime.


Com efeito, um aspecto crucial para categorizar um principado nesse caso é remeter àquela descrição de Maquiavel mencionando a existência de Estados divididos em repúblicas e principados, sendo estes últimos herdados ou conquistados.


Essa dinâmica política está presente nas disputas e manutenções de poder nas favelas cariocas que apresentam em seus cotidianos as relações de dominação de organizações autossuficientes – espécie de Estado paralelo – que independem do Estado oficial para gerir a vida daqueles que desde sempre foram por este último abandonados: os favelados.


Os novos atores que surgiram, no final da década de 90 e início dos anos 2000, nas favelas cariocas mudaram o cenário interno de muitas delas. Diante do exposto, houve mudanças de uma década para outra, uma passagem do fim de um período “romantizado” das favelas para o momento chamado de “Cidade Partida”, segundo o jornalista e escritor Zuenir Ventura.


Agora, assim como os principados têm seus líderes (príncipes), as favelas cariocas possuem seus chefes ou “donos”. 

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