Estereótipos e preconceitos
É lamentável que o horário nobre da TV aberta no Brasil ainda use estéticas preconceituosas como plataforma para alavancar a audiência
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Siga noAo longo da história da teledramaturgia brasileira, a maneira como fazer novelas mudou drasticamente. Deixou de lado o conservadorismo para ganhar uma roupagem mais progressista e inclusiva. É comum, por exemplo, vermos os streamings e canais de TV a cabo, que reexibem produções antigas, avisarem o telespectador sobre potenciais gatilhos ou claros comportamentos preconceituosos contidos naquela programação. "Essa obra pode conter representações negativas e estereótipos da época em que foi realizada", lê-se logo no início da atração.
Problemática semelhante atinge o mundo dos realities shows. Em "BBB: O Documentário", a produção acertadamente reflete sobre os preconceitos reforçados nas primeiras edições do Big Brother Brasil, que completa 25 anos no ar em 2025. Relatos de ex-participantes ressaltam como o racismo era reforçado na "casa mais vigiada", além do machismo e do preconceito contra a população LGBTQIA+ e outras minorias.
Essas intolerâncias criaram um cabo de guerra na história do programa, que terminou com a vitória das vítimas em alguns casos, como o de Jean Wyllys na edição de 2005; e dos opressores em outros, como os triunfos de Diego Alemão, em 2007, e Marcelo Dourado na décima versão.
Se o tempo fez bem para a sociedade, que hoje problematiza mais o papel da TV na promoção de um status quo mais plural, ainda temos muito o que melhorar. Muito se discute, nos bastidores da indústria do entretenimento, sobre a audiência abaixo da média do horário da novela "Mania de Você", exibida pela TV Globo em sua agenda mais nobre, a popular "novela das nove". Porém, o real problema que envolve a produção de João Emanuel Carneiro passa pelo reforço a estereótipos preconceituosos em relação à população negra – já merecidamente problematizados anteriormente pelas jornalistas Carla Bittencourt e Fábia Oliveira.
Três personagens em questão chamam a atenção. Edmilson (interpretado por Érico Brás) reforça a imagem do negro como "malandro". Durante toda a trama, procura maneiras de passar a perna em outros integrantes da novela. O seu único objetivo é tirar vantagem. No episódio mais recente, usa o cartão de crédito de outro personagem em um bar, antes do cancelamento do serviço. Para se livrar do problema, acusa a própria filha, Lorena (Liza Del Dala), que também se safa da acusação com base no "jogo de empurra". No fim das contas, a vítima é quem assume o prejuízo.
A filha Lorena é mais uma estereotipada em "Mania de Você". A principal narrativa em torno dela envolve o filho recém-nascido. Com a mesma veia do pai, usa a "malandragem" para cobrar pensão de três personagens ao mesmo tempo, como se todos eles fossem pai da criança. A cobrança tem como alvos Gael (Igor Cosso), Robson (Eriberto Leão) e Sirley (David Júnior).
A trinca preconceituosa é fechada justamente com Sirley. Mas, dessa vez, o estereótipo reforçado é outro: o mito da potência sexual vigorosa do negro. Casado com Berta (Eliane Giardini), ele se envolve em casos extraconjugais com diferentes personagens durante a novela, entre elas Ísis, interpretada por Mariana Ximenes. O seu talento sexual é tanto, que algumas das amantes sabem que são “traídas” com outras mulheres, mas aceitam tal condição pelo “prazer único” de se relacionar com Sirley.
É lamentável que o horário nobre da TV aberta no Brasil ainda use estéticas preconceituosas como plataforma para alavancar a audiência. A teledramaturgia, como produções anteriores mostraram ao longo dos últimos anos, quando bem usada, tem um poder importante de cidadania e conscientização nas mãos.
O papel desempenhado pelo núcleo negro de “Mania de Você”, no entanto, pode ser facilmente alvo de avisos sobre “representações negativas da época em que foi produzida”, quando voltar às telas em alguns anos. Evidentemente, porém, com a diferença de que a sociedade atual já é madura o suficiente para refletir sobre tais intolerâncias.