Cerco contra as bets caduca
O governo federal afirmou em setembro que havia chegado "a hora de colocar ordem" nas apostas online. Passados seis meses, o cenário segue desarranjado
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Siga noUm relatório inédito elaborado em setembro pelo Banco Central (BC) acendeu o alerta: no mês anterior, beneficiários do Bolsa Família haviam transferido ao menos R$ 3 bilhões a empresas de apostas, as famosas bets. A prática — que desde 2018, quando liberada, vem afetando a economia das famílias brasileiras, das mais carentes às abastadas — parecia, então, ter entrado na lista de prioridades do governo. “Chegou a hora de colocar ordem nisso”, afirmou, à época, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Passados seis meses, o cenário segue desarranjado.
O próprio BC indica tal panorama. A autarquia federal estimou que os gastos com apostas online no país somavam cerca de R$ 20 bilhões mensais de janeiro a agosto de 2024. O montante, porém, chega a ser 50% maior, conforme revelou, nesta terça-feira, o presidente do BC, Gabriel Galípolo, à CPI das Bets do Senado. De janeiro a março deste ano, os brasileiros gastaram até R$ 30 bilhões a cada 30 dias. É praticamente o que foi investido em sistemas de água e esgoto no país ao longo de todo o ano de 2023, um dos maiores repasses para a áreas nos últimos 20 anos.
Galípolo atribuiu a diferença de cifras ao recebimento de dados mais robustos desde a regulamentação das apostas em bets, em 1º janeiro deste ano, e admitiu que a prática pode afetar a economia brasileira, com possíveis desdobramentos na política de juros. “É importante para o BC avaliar potenciais impactos na estabilidade financeira e na transmissão da política monetária”, afirmou, ressaltando que não é papel da autarquia fiscalizar as empresas do setor.
Já é fato, segundo o presidente do BC, que bancos consideram o hábito de fazer apostas online ao analisar o perfil de quem solicita empréstimos, cobrando custos de crédito mais elevados a esses clientes. A dinâmica se torna ainda mais preocupante ao se considerar que não é incomum a busca por esse serviço justamente para seguir gastando nas bets. Há de se lembrar, ainda, que a perda de poder de compra dos brasileiros é uma das principais preocupações do Planalto, que tem lançado medidas para facilitar o acesso ao crédito e reduzir o endividamento.
São muitos, porém, os brasileiros em risco de comprometer a saúde financeira — e a mental — devido ao descontrole com as apostas online. Estudo apresentado pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) nesta segunda-feira mostra que 10,9 milhões de brasileiros com mais de 14 anos são jogadores de risco: apostam de forma a criar problemas emocionais, familiares ou financeiros. Desses, 1,4 milhão têm um comportamento compatível com o diagnóstico do transtorno do jogo, quando há um desejo incontrolável de jogar mesmo diante dos prejuízos.
Ao apresentar os dados, os pesquisadores da Unifesp indicaram medidas para frear a compulsão por jogos de azar no país. Entre elas, limitar a divulgação de publicidades feitas por pessoas públicas, incluindo os influencers. Quando começou a se debruçar sobre a explosão das apostas online, o Ministério da Fazenda publicou uma portaria prevendo a responsabilização das operadoras por publicidades abusivas ou mesmo enganosas. Não há notícias de punições expressivas nesse sentido, e o portfólio de garotos propaganda tarimbados só cresce.
Também não houve avanços no suporte aos mais vulneráveis — falava-se, por exemplo, na elaboração de relatórios regulares indicando apostadores compulsivos e a adoção de uma pausa obrigatória nos momentos de crise. Além disso, a proposta de proibir o uso do dinheiro recebido no Bolsa Família em apostas online não deslancha, pois esbarra sobretudo nas limitações técnicas. Sobram, portanto, evidências de que o prometido cerco contra as bets está caducando. O governo atual, assim como o antecessor, perde a oportunidade de frear uma ameaça tão custosa aos brasileiros.