Distopia. Um lugar ou estado imaginário onde se vive em condições de extrema opressão, desespero ou privação. Na literatura, obra que descreve uma sociedade hipotética e autoritária. Esse é o caso do livro “Admirável mundo novo”, de Aldous Huxley, clássico que se tornou um jovem senhor de 90 anos em 2022 e agora ganha versão em quadrinhos publicada com o selo de HQs da Companhia das Letras, o “Quadrinhos na Cia”.
A adaptação, ilustrada pelo londrino Fred Fordham e traduzida para o português pela escritora gaúcha Luisa Geisler, pode ser o pontapé inicial para novas gerações de leitores de ficção científica, além de funcionar como uma boa dose de “Soma”, no melhor dos sentidos, àqueles que já são fãs da obra-prima.
A história se passa em um mundo distante, no ano 632 depois de Ford (referência a Henry Ford, o primeiro a implantar a linha de montagem em série na produção de carros), onde as pessoas são feitas em fábricas de gente e padronizadas em lotes uniformes, sendo classificadas como alfas (os dominantes), betas, gamas, deltas e ípsilons.
Entre os principais personagens está Bernard Marx, psicólogo um tanto quanto tímido, frustrado por sua baixa estatura, que se sente atraído por Lenina Crowne, uma mulher imersa na cultura da nova sociedade e que segue a regra de colecionar parceiros sexuais. Em determinado momento, eles visitam um acampamento de “selvagens” onde encontram Linda, que teve um filho de forma natural com o Diretor, chefe de Bernard.
O fruto desse relacionamento (chamado de John, O Selvagem) recebe uma educação à moda antiga, com acesso, inclusive, a livros tradicionais, como os de Shakespeare, o que o faz detestar a realidade do admirável mundo novo.
A trama é considerada por críticos literários, ao lado de “1984”, de George Orwell, e “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury, uma das principais obras antiutópicas do século 20 e mostra uma sociedade hiperestimulada ao consumo (descartar é melhor do que consertar), sustentada em relações frágeis (todo mundo pertence a todos), e alienada (a história é uma farsa).
Apesar de todos os indivíduos serem permanentemente felizes e pacíficos, não há espaço para os valores humanos, privacidade, pensamento crítico ou liberdade criativa. Com um enredo potente como esse, claro, “Admirável mundo novo” rendeu dois filmes, lançados em 1980 e 1998, e virou série de TV em 2020, com direito a atuação de Demi Moore.
O autor, Aldous Huxley (1894-1963), nasceu em uma família de intelectuais ingleses e estudou medicina e literatura. Viveu na Itália durante o regime fascista de Mussolini e depois decidiu se mudar para Hollywood com o objetivo de trabalhar como roteirista.
No livro “As portas da percepção” narrou suas experiências com mescalina, alucinógeno sintetizado a partir de um cacto. Também estão entre seus principais trabalhos “A ilha”, onde os indivíduos perseguem serenamente a felicidade, e “Sem olhos em Gaza”, que fala sobre egoísmo e prazeres mundanos. Seu pai, o médico Thomas Huxley (1825-1895), ficou conhecido como "O Buldogue de Darwin" por defender a teoria da evolução das espécies e era um entusiasta do conhecimento científico.
Nessa primeira versão graphic novel de “Admirável mundo novo”, a experiência visual é um destaque por tornar a leitura ágil e dinâmica, principalmente quando os diálogos dos personagens que estão em ambientes diferentes passam a ser intercalados.
Além disso, as cores são utilizadas para provocar e despertar diferentes sensações e sentimentos no leitor, que pode perceber a passagem do tempo, as mudanças de cenário e as expressões de cada figurante, por exemplo, mesmo quando não há falas ou interações. O livro original tem trechos densos, dramáticos, inclusive pelas reflexões propostas pelo autor, mas essa carga não é perdida na versão em quadrinhos devido à sobreposição de tons e onomatopeias.
A sociedade descrita por Huxley, que inspirou gerações de cineastas e escritores, é um lugar onde as crianças levam choques para desenvolver aversão à natureza e aos livros, afinal “você acaba não consumindo muito se fica sentado lendo”, onde as pessoas são estimuladas ao uso constante de “Soma”, a droga perfeita que “tem todas as vantagens do cristianismo e do álcool, mas nenhum de seus defeitos”, onde os padrões de comportamento são moldados pela hipnopedia (quando os bebês ouvem frases repetidas durante o sono), um ambiente em que a produção em massa de seres humanos geneticamente idênticos busca a estabilidade social.
Sobre a versão ilustrada por Fred Fordham, o designer e criador de conteúdo digital Renato Lebeau destaca que “uma boa adaptação para os quadrinhos é aquela que te faz querer ler a obra original, e a edição em HQ de ‘Admirável mundo novo’ cumpre essa expectativa”.
“Uma das principais sacadas foi a paleta de cores, que é sempre muito clara, com muita luminosidade. Dá um ar de limpeza, parece que a sociedade está sempre limpa, não importa em que momento você esteja. Apesar do texto ser bem sombrio, a todo momento você percebe que estamos falando de uma sociedade autoritária que prega o higienismo”, disse em vídeo publicado em sua página no Instagram, @impulsohq.
Nota-se, com isso, que o pesadelo do totalitarismo descrito originalmente por Aldous Huxley, quando delicadamente incorporado à arte do desenho, é fortalecido como se uma lupa ampliasse sua relevância, originalidade e perturbadora atualidade, o que mostra que uma boa história pode ser contada de maneiras diferentes sem perder o brilhantismo.
Trecho do livro
“O mundo é estável agora. As pessoas são felizes, conseguem o que querem, e nunca querem o que não podem conseguir. Estão bem de vida, estão seguras, nunca adoecem, não têm medo da morte. Vivem em um estado de feliz ignorância em relação à paixão e à velhice; não são atormentadas por mães nem pais; não têm cônjuges, nem filhos, nem amantes por quem sentir emoções fortes. Estão tão condicionadas que é praticamente impossível não se comportarem como devem. E, se alguma coisa der errado, existe o Soma. Que aliás você jogou pela janela em nome de liberdade, Sr. Selvagem. Liberdade!”
ENTREVISTA
Luisa Geisler, tradutora e escritora
‘‘as ilustrações e sobreposições multiplicam os sentidos’’
Quais foram os desafios para fazer a tradução da versão em quadrinhos de “Admirável mundo novo”? Você já tinha feito trabalhos desse gênero?
Um dos desafios do quadrinho, além da linguagem muito particular do Huxley, é a questão do espaço. Há um espaço físico limitado para palavras, para caracteres. Em cima disso, o jogo de palavras de Huxley agora joga com a co-criação a partir das imagens do Fred Fordham. Sou tradutora há mais de dez anos, já trabalhei com autores tipo George Orwell ou Joyce Carol Oates, livros infantis e quadrinhos também. Cada desafio é sempre único.
As imagens contribuem para o processo de tradução? Por quê? Quais as diferenças de se traduzir um romance tradicional e um HQ?
Quem traduz lida com todos os elementos para a comunicação, e isso inclui a imagem nos quadrinhos. Por exemplo, na HQ, pode haver um trocadilho que está ilustrado, o que me força a usar determinadas palavras. Na prosa, posso ter restrições causadas justamente pelo uso exclusivo da linguagem: em inglês em primeira pessoa (eu), é muito mais fácil esconder o gênero da personagem. Cada gênero limita em alguma forma, seja romance, poesia ou quadrinho.
Os fãs de Aldous Huxley poderão se surpreender com essa versão da história? Como escritora, qual a sua opinião sobre essa edição?
Não só penso que poderão se surpreender com a versão, como espero que se surpreendam (risos). Como autora, enxergo a visualidade na obra algo de uma riqueza tremenda. Assim como uma pessoa pode ler uma única página do Huxley por horas, também acontece na HQ. Mesmo que haja menos palavras, as ilustrações e sobreposições multiplicam os sentidos.
Você considera que esse modelo pode chamar a atenção de novas gerações de leitores para os livros clássicos? Por quê?
Eu espero que sim, mas não vejo essa função exclusiva no quadrinho. Hoje mais do que nunca, circulam HQs potentes em termos visuais e narrativos, como as de Marjane Satrapi, Art Spiegelman, Fabio Moon e Gabriel Bá, Rafael Coutinho, Alison Bechdel. É óbvio que adoraria que as pessoas se aproximassem mais da obra de Huxley, que fala tanto do nosso tempo. Por outro lado, se virarem ávidas leitoras de quadrinhos, a missão estará cumprida.
O mercado de tradução de quadrinhos está aquecido no Brasil? Como você observa as tendências e como um tradutor pode se destacar nessa área?
Para quem quiser entender melhor esse universo, em especial da tradução de quadrinhos, recomendo o podcast “Nota dos Tradutores”. Érico Assis, Carlos H. Rutz e Mario Luiz C. Barroso são monstros tradutórios e trabalham com quadrinhos regularmente. O podcast mostra os vários ângulos da tradução, dos editores aos anglicismos. Além do mais, é hilário.
Admirável mundo novo
• De Aldous Huxley
• Fred Fordham: adaptação e ilustrações
• Luisa Geisler: tradução
• Selo Quadrinhos na Cia (Companhia das Letras)
• 240 páginas
• R$ 89,90 (livro)
• R$ 44,90 (e-book)