Bruna Mitrano
“herança”
meu tio conta que certa vez
meu avô convulsionou atravessando a passarela e
rolou pela escada
ele vendia frutas num carrinho de mão
imagino maçãs e laranjas quicando nos degraus sem
esperar pelo corpo do meu avô
se debatendo em queda
dando com a cabeça em bocéis
inconsciente das perdas e das partes quebradas
igual a você
meu tio diz
igual a mim
que herdei a epilepsia
de um homem que não conheci
e o medo de atravessar passarelas.
contra este último
desenvolvi uma espécie de procedimento
olhar fixo pra frente
dar passos grandes e
lembrar que ainda
tenho um chão debaixo dos pés.
“vínculos”
semente de abóbora cura solitária quem
não é
quem tem estômago pra lembrar de
ser menina
irmã de leite
de vínculos me perdi
no desamparo ela ouviu de novo a
panela de ferro
o grunhido do porco que demora pra morrer com o
facão enterrado no couro
sangra cada dia da idade dos homens do cafezal os
que comem até os intestinos
e têm rasgos na cara mas
dentro da botina
a sola é tão fina que dói.
“armadilha”
existem muitas maneiras de
atrair o animal quando se
deseja atirar
a garrafa em chamas
o erro de perto é improvável
o erro de perto parece maior
você pode oferecer água animal
nenhum nega água não pela
sede mas pelo gesto e pelo
gesto você pode
amar
mas você não pode morrer
enquanto o animal morre você
pode fechar os olhos
nenhuma explosão toca o corpo
o que toca é o que é explodido
e a água talvez volte
pela boca
via inevitável
com uma promessa de vingança.
“rotina”
pela manhã empurrar lama
com rodo
enxaguar os panos enfiados
nos pés das portas
desempilhar os móveis
e colocá-los de cabeça pra cima
toalhas escaldadas
trazem a avó
reerguendo a casa
tantos temporais depois
de desenhar com uma lasca de tijolo sóis
na calçada.
“Ninguém quis ver”
• De Bruna Mitrano
• Companhia das Letras
• 96 páginas.
• R$ 59,90 | E-book: R$: 34,90
SOBRE A AUTORA
Nascida em 1985 no complexo de Senador Camará, na periferia do Rio de Janeiro, Bruna Mitrano é professora e escritora. Publicou em 2016 o livro de poemas “Não” (Patuá) e lança, neste sábado (11/11), em Belo Horizonte, o livro “Ninguém quis ver”. A roda de conversa com a poeta mineira Mônica de Aquino começa às 11h30 na Livraria Jenipapo (Savassi) e faz parte da programação do Circuito Livrarias do Festival Literário Internacional de BH (FLIBH).