A estreia de

A estreia de "Grande Sertão: Veredas" para o cinema brasileiros está prevista para maio de 2024.

crédito: Globoplay/Divulgação

“Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa, é – para mim e para muita gente que entende disso bem mais do que eu – o maior romance da língua portuguesa, mas ele é pouco conhecido no mundo. É muito menos conhecido que os romances de Machado de Assis, Eça de Queiroz, Jorge Amado, José Saramago, Clarice Lispector, Mia Couto ou Paulo Coelho, e o motivo parece evidente: GSV é muito mais difícil de traduzir.


Difícil, mas não impossível. O próprio Rosa elogiou muito as traduções para o alemão (Curt Meyer-Clason), para o italiano (Edoardo Bizzarri) e parece que a holandesa também é boa, mas a única tradução que existe para o inglês é, sejamos gentis, horrível de ruim. A começar pelo título, ‘The devil to pay in the backlands’, que parece um western de terceira categoria. E é preciso entender muito pouco da história e de seu narrador para botar o nome do Cujo, “o que Diga”, no título. “Não tem diabo nenhum, não existe, não pode.”


A péssima tradução de GSV para o inglês, que virou caso de estudo, é assinada por Harriet de Onís e James Taylor. Harriet era americana, leu uma tradução para o espanhol de “A hora e a vez de Augusto Matraga” (conto do Rosa em “Sagarana”), e convenceu o editor americano Alfred Knopf a publicar GSV, numa tradução dela. Knopf comprou os direitos. Harriet procurou Guimarães Rosa, que aceitou a proposta e prometeu dar uma olhada no andamento do trabalho. Prometeu, mas não cumpriu, passou o trabalho para uma secretária, que também não deu muita importância ao assunto.


Onís, uma americana que falava bem espanhol e pouco português, traduziu um terço do livro até perceber a encrenca em que se metera. Ela comunicou o problema a Knopf, e indicou um professor americano, especialista em português brasileiro. Ele aceitou a indicação e contratou Taylor, que aceitou a empreitada e resolveu simplificar tudo, de modo que o leitor americano médio pudesse ao menos entender a história. O resultado foi um desastre.


Todas as etapas deste fracasso estão registradas em cartas entre Knopf e Onís, algumas bem educadas, outras nem tanto: “Olhe para a história recente de nossos negócios juntos. Você se apaixonou completamente, com entusiasmo, pelo romance de Guimarães Rosa e violamos praticamente a primeira regra de julgamento editorial ao comprar o livro apenas baseado na sua palavra. Mesmo assim, isso foi uma medida da nossa confiança em você. Depois, você se comprometeu a fazer a tradução, apenas para descobrir que tinha se comprometido com mais do que podia realizar. Em seguida, você nos recomendou o Professor Taylor, com resultados ainda mais desastrosos”.


Mesmo assim, “The devil to pay in the backlands” foi lançado em 1963 e destroçado pelas críticas. O próprio Rosa colecionou 27 resenhas publicadas: “Uma traição admirável”, “pobre”, “falha”, “um dos melhores estudos de caso de expectativas não cumpridas”. Quem não detonou o livro, o ignorou completamente, e assim terminou a história de "Grande Sertão: Veredas” em inglês.


Por enquanto. Está a caminho a tradução da australiana Alison Entrekin, e pelos trechos já publicados - “Passarinho que se debruça o voo já está pronto” - parece que o mundo vai ter uma segunda chance de conhecer Riobaldo.


Eu e Guel Arraes adaptamos “Grande Sertão: Veredas” para o cinema. O filme, que ele dirigiu, estreou em um festival na Estônia. Desde o começo, nossa determinação era usar o máximo que fosse possível as palavras originais do romance, cumprimos a tarefa auto-imposta à risca. Só quando o filme estava ficando pronto uma dúvida em forma de gota gelada me correu pela espinha, liguei para o Guel: “Quem vai fazer as legendas em inglês?”. Não tínhamos pensado nisso. Corri para a tradução existente, o que não ajudou em nada e nos alertou ainda mais para a dificuldade da empreitada.


Procuramos Alison Entrekin, que foi gentil e compreensiva a respeito do nosso problema e riu dos nossos prazos. Ela anda pelo meio da tradução, deve levar mais dois anos, no mínimo. Fomos salvos por uma indicação da própria Alison, Melissa Mann, uma de suas melhores alunas que, ao saber que o volume de texto não era comparável ao do livro – as legendas do filme têm 51 mil caracteres, o romance tem 707 mil – aceitou a tarefa, que realizou brilhantemente. Pelas primeiras reações ao filme na Europa, parece que a tradução funcionou.


Tomara que o filme ajude a despertar a curiosidade de ler o livro, no original ou na nova tradução que vem aí. Riobaldo pode fazer muito bem ao mundo.

Cineasta e roteirista, Jorge Furtado escreveu o roteiro de “Grande sertão” com Guel Arraes. O artigo acima foi publicado originalmente no site da Casa de Cinema de Porto Alegre.

Nas telas em 2024

Dirigido por Guel Arraes, que escreveu o roteiro com Jorge Furtado, “Grande Sertão” teve estreia mundial na 27ª edição do Tallinn Black Nights Film Festival, na Estônia, no último dia 10 de novembro. O longa-metragem tem como protagonistas Caio Blat (Riobaldo) e Luisa Arraes (Diadorim). Ainda no elenco estão nomes como Rodrigo Lombardi (Joca Ramiro), Eduardo Sterblitch (Hermógenes), Luis Miranda (Zé Bebelo), Mariana Nunes (Otacília) e Luellem de Castro (Nhorinhá). A estreia nos cinemas brasileiros está prevista para maio de 2024.


Do português para o inglês

Confira, abaixo, alguns exemplos do original de Guimarães Rosa e da tradução de Melissa Mann para as legendas do filme “Grande sertão”.

“Sertão é o penal, criminal. Sertão é onde o homem tem de ter a dura nuca e a mão quadrada. Sertão é onde não tem limite de nada. É onde manda quem é forte, com as astúcias. Sertão, – se diz –, você querendo procurar, aí é que nunca vai encontrar. Mas sem ajuda de nada nem ninguém, de repente, por si, o Sertão vem. O Sertão está em todo lugar. Porque é dentro da gente que ele está. Tudo aqui é perdido, tudo é achado. Deus mesmo, quando vier, que venha armado. Sertão, quando você se informa. Sertão é onde o pensamento se forma, mais forte que o poder do lugar.” (De “Grande Sertão: Veredas”)

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“The Sertão’s got its own penal code, criminal road. It’s where a man’s gotta keep a stiff neck and clenched fists. Nothing’s off limits. The strong, the cunning – they call the shots. “The Sertão,” they say, “you’ll never find it if you look. Until, suddenly, out of nowhere, no help from anyone or anything, the Sertão appears.” The Sertão is everywhere. Because it’s inside us it is. Everything here is lost, everything is found. God Himself, when He comes, would that He come armed. Sertão when you get informed. Sertão, where thoughts are formed, stronger than the power of the place itself.” (tradução de Melissa Mann, revisão de Ellen Heyward)

“Você mesmo, você pode imaginar de se ver um corpo claro, morto à mão, baleado, tinto todo de seu sangue, e os lábios da boca descorados no branquiço, e os olhos dum terminado estilo, meio aberto, meio fechado? Você pode conceber de alguém aurorear de todo amor e morrer como só para um? E essa pessoa de quem você gostou, que era um destino, uma surda esperança em sua vida?! Você… Me dê um silêncio. Eu vou contar.”

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“You, you yourself, can you imagine seeing a pure being shot to death, dyed red from their own blood, their lips drained white, their glassy eyes half open, half closed? Can you imagine­ - someone in the dawn of love dying but for one? Can you imagine them – the one you had liked, the one who had been your destiny, your blind hope in life?! Just give me a moment’s silence, and I’ll tell you.” (tradução de Melissa Mann, revisão de Ellen Heyward)

“Amável você me ouviu, a minha história registrou. Agora peço que me declare, à puridade. O diabo existe? Você acredita na pessoa dele? Acha que a minha alma eu vendi, pactário?! Acredita, acha fio de verdade nesse palavrório de com o demo se tratar pacto? Não, não é não? Em falso receio todos desfalam o nome dele. Dizem só: o que Diga. Nonada. Doideira. A fantasiação. O Diabo não existe. Ele vige dentro do homem – ou é o homem arruinado, ou é o homem dos avessos. O diabo não existe real. O que existe é o homem humano.”

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“You’ve listened to me kindly, taken in my story. Now I ask you tell me in all sincerity: Does the devil exist? Do you believe in such a being? Do you think I made a pact with my soul? Do you believe, do you find any inkling of truth in this talk of contracting with the devil? You don’t, do you? In false fears, they repress mention of his name. They merely say: Whatch-a-Ma-Call. Nonaught. Nonsense. Imagined-Imagination. There is no Devil. He reigns within – man is either blighted, or evil. There’s no such thing as the devil, just the humanness of man.” (tradução de Melissa Mann, revisão de Ellen Heyward)