“Você já viu um fantasma?”

A pergunta parte de mim mesma ou de você. De toda forma, ela é feita. A resposta é sim e não, simultaneamente. Mas a pergunta está errada. É necessário investigar de forma mais precisa e mais ampla – uma contradição:

“Você já encontrou um fantasma?”

A linguagem dos fantasmas é visual. Flutuante, etérea, transparente. Visualização como prova definitiva. A validação do “eu-vi-com-meus-próprios-olhos”. Então digo sim, já encontrei um fantasma, mas nunca vi nenhum. Não vi nenhuma forma fantasmagórica, suas bordas incertas, mas senti suas mãos, seu peso em minha pele, mais de uma vez. Como se uma outra pessoa, viva, com membros de carne e osso estivesse me tocando. Tatilidade não é o mesmo que visibilidade, mas tem sua própria verdade.

Nos meses após a morte de minha avó, meu avô começou a me dizer coisas sobre a morte dela. Declarações muito específicas.

“Se vovó fosse aparecer para alguém da família, seria para você.”

Nunca me explicaram em que se baseavam essas palavras e não entendi a lógica de ter sido escolhida. Não quando meu irmão já tinha recebido uma visita fantasma, era também capaz de detectar auras e tinha sonhos proféticos. É possível que meu avô tivesse enxergado o mesmo potencial psíquico que permeia as mulheres de minha família, ainda que eu mesma não tivesse sentido. E então algo aconteceu. Não tentei resistir a esta história. Não tentei racionalizá-la. Tentei deixar de lado meus pensamentos de que “nada se cria, nada se perde”, e aceitei.

A cama de solteiro no meu antigo quarto na casa dos meus pais ficava debaixo da janela e dava para um telhado plano. Por vários meses depois que ela morreu, antes de dormir, eu me esgueirava por sob as cortinas e ficava olhando a noite pela janela. Observando as estrelas, conversava com ela. Possivelmente – porque ainda acreditava em Deus, no Céu e nos santos naquela época –, rezava por ela. Eu a deificava, pedindo intercessão como penitentes fazem com santas. Mas, majoritariamente, falava sobre como sentia saudades, sobre como estava a vida.

Um ano após a sua morte, passei por um período de tristeza. Deitada sob a janela, com a mente inquieta, me enrolava toda nos lençóis a cada noite e passava muito tempo chorando virada para a parede. Então conversava com minha avó, olhando para o contorno quadrado de parte da Ursa Maior ou tentando avaliar a fase da lua no céu daquela noite. Virava de lado, completava minha inspeção das estrelas e pedia a ela que melhorasse a situação. Então, numa noite, senti algo. Uma mão no meu ombro, apertando-o de forma carinhosa e depois massageando minhas costas, como se eu fosse uma criança doente.

“Vire para o outro lado.” “Vire para o outro lado.” “Vire para o outro lado.”

Na minha cabeça, minha voz me mandava virar. Meu corpo parecia pregado na cama, mas tudo o que eu queria era virar. Abri os olhos e o quarto estava todo azul claro. Aquele canto escuro da casa era imune ao luar, mas lá estava, banhado em um tom cerúleo. Fiz todas aquelas coisas de cinema, aquelas coisas que meu irmão fazia quando Annie estava sentada na ponta da cama dele – beliscar, arregalar os olhos, dizer a mim mesma: “Isso é real, certo? Você não está mais dormindo, não é?”. Eu estava acordada, sei que estava, mas o medo superou a curiosidade. Fiquei paralisada e ouvi meu coração batendo no meu peito. Até hoje me arrependo de não ter ido na direção do azul para saber o que tinha ali. Se fosse de fato minha avó ao lado da minha cama, eu deveria pelo menos fazer a gentileza de cumprimentá-la. Perguntar como estava e se sentia falta da vida. Mais importante, no entanto, seria lembrar de suas palavras.

“Deve-se temer mais os vivos que os mortos.”

Não importa o quanto amei alguém na vida, ou quão profundo é meu luto – depois que alguém morre e é enterrado, eu não visito mais seu túmulo. Há pessoas para quem cemitérios são santuários, mas não sinto nada quando estou ali. Uma caixa enterrada sob o solo úmido não se parece em nada com a pessoa que amei. “Quando eu morrer, podem me cremar”, aviso. “Removam meus anéis (boa sorte para quem tentar tirar todo o metal do meu corpo) e queimem meus restos mortais como em uma pira.” A grama agora cresce sobre minha avó e penso nela arrancando aquelas ervas daninhas amarelas do gramado, sem saber que o fim de sua vida estava à esgueira. Prestes a dar seu último suspiro, em pé, na grama, como no invólucro verde de seu local de descanso eterno.
*
Antes de acabar sob um retângulo verdejante e bem cuidado, toda pessoa deveria deixar, ainda que por pouco tempo, o lugar onde nasceu. Quando penso em minha avó, sinto os círculos diminutos de seu mundo; sua vida linear e seu mapa exíguo, suas enormes perdas e noites insones. Não é que deseje a ela uma vida maior, cheia de horizontes mais amplos, mas queria que ela tivesse tido mais paz, um pouco de tranquilidade.

O escritor estadunidense Barry Hannah dizia que há um fantasma em toda história: um lugar, uma lembrança, um sentimento há muito esquecido. Experiências que nunca desaparecem totalmente, pessoas que deixam uma marca. Um resíduo permanente, ainda que invisível. Memórias sujas de fuligem e flores prensadas; uma parte de nós agora, como uma prótese formada do passado. Por muito tempo, minha avó foi um fantasma em sua própria história, vivendo fora de si mesma por causa do medo e da dor. A mãe dela também era assombrada, e se existe vida após a morte, ou algum espaço residual – o lugar onde os fantasmas de homens que vieram até elas estão –, talvez estejam todas juntas agora. Ao lado das mulheres que as precederam, aqueles exércitos de mães e de Madalenas, mulheres que tanto quiseram do mundo; mulheres que nunca pediram nada; mulheres que caminhavam por aquelas colinas, chamando o vento; mulheres desaparecidas, moídas pelo destino; mas também as mulheres que partiram em busca de algo melhor, ou aquelas que encontraram um senso de identidade – seja paz ou fúria interior; mulheres que encontravam o que queriam; e todas as mulheres que entraram no fogo do futuro sem olhar para trás.

A autora

Sinéad Gleeson é escritora de ensaios, crítica e ficção. “Constelações: ensaios do corpo”, lançado no Brasil pela editora mineira Relicário, ganhou o prêmio de melhor livro do ano de não ficção do Irish Book Awards, o prêmio literário de Dalkey para escritores emergentes e foi selecionada para os prêmios Rathbones Folio, James Tait Black Memorial e Michel Déon. Em 2022, Sinéad coeditou, com a baixista Kim Gordon, ex-Sonic Youth, a coleção “This Woman’s Work: Essays on Music”. Sinéad também colabora com artistas em performances e instalações sonoras. Sua obra já foi traduzida para vários idiomas e seu romance de estreia, Hagstone, será publicado em abril de 2024 pela 4th Estate. Ela vive em Dublin e participou, na última quinta-feira, da mesa “Lembranças de todas as coisas ocorridas” na 21ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), no Rio de Janeiro.

• “Constelações: Ensaios do corpo”
• Sinéad Gleeson
• Tradução de Maria Rita Viana
• Relicário Edições
• 216 páginas
• R$ 65,90