Mónica ojeda, que está no brasil para a flip: personagens femininas que enfrentam dores e êxtases  -  (crédito: Isabel Wagerman/ Divulgação)

Mónica ojeda, que está no brasil para a flip: personagens femininas que enfrentam dores e êxtases

crédito: Isabel Wagerman/ Divulgação

“O mistério é uma prece que se impõe”, afirma a narradora de “Voladoras”, história sobre criaturas de apenas um olho e cabelos negros e batizam o mais recente livro de Mónica Ojeda lançado no Brasil. Equatoriana de Guayaquil, nascida em 1988, Ojeda ganhou destaque no ano passado com o lançamento do romance “Mandíbula”, assombroso tour de force sobre a relação doentia entre uma professora e uma aluna adolescente.

Agora é a vez de a editora mineira Autêntica lançar, por meio do selo dedicado à literatura contemporânea, um livro de contos igualmente perturbadores, com histórias de assombrações, cabeças voadoras, mutilações, incesto e até amor. Ainda que o sentimento seja forjado por desejos e perversões. “O amor unificava tudo e era isto que elas pediam: estar juntas ao som dos arranhões que a mãe fazia a si mesma, nas gavetas dos comprimidos se abrindo e fechando, na água das torneiras saindo a toda pressão, no choro alto”, narra Ojeda em “Slasher”, sobre uma garota que imagina cortar a língua da irmã gêmea com um estilete. 

Leia: Crítica: 'Voladoras' mostra fascínio de personagens femininas expostas ao terror 

A autora define “Voladoras” como “um livro de arrebatamento pelas paisagens e mitos andinos, essa busca de ampliar a geografia sentimental dos manguezais aos vulcões.” Mas que, apesar das aparições sobrenaturais de seres voadores, faz do corpo humano a maior fonte de pesadelos. “Corpos que sofrem experimentam horror e medo na primeira pessoa, então tentei escrever o que acontece com um corpo nesse estado: um corpo que não está apenas entorpecido e no escuro, mas também iluminado pela sensibilidade despertada pela consciência da fragilidade”, conta Mónica Ojeda ao Estado de Minas.

A equatoriana está no Brasil como convidada na programação principal da 21ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Na última quinta-feira, participou da mesa “Um quarto pouco escuro” com a espanhola Alana S. Portero. Pouco antes de chegar ao Rio de Janeiro, Ojeda contou sobre as suas expectativas para a viagem: “Quero conhecer mais a literatura brasileira, comer deliciosamente, ver belas paisagens e fazer amigos.” Leia, a seguir, a entrevista de Mónica Ojeda ao Pensar.

Como surgiram as histórias de “Voladoras”?
São histórias em que eu queria pensar sobre a violência que ocorre, sobretudo, nos corpos das mulheres, mas queria que esses corpos fossem atravessados não só pelos danos, mas também pelas montanhas, pelos vulcões, pelos condores e pelas palavras. Corpos que sofrem experimentam horror e medo na primeira pessoa, então tentei escrever o que acontece com um corpo nesse estado: um corpo que não está apenas entorpecido e no escuro, mas também iluminado pela sensibilidade despertada pela consciência da fragilidade. Há beleza no horror, disse Joanna Baillie, e acho que ela está certa.

Como as paisagens e mitos andinos estão presentes em sua literatura?
Sou da costa do Equador, de uma cidade portuária, não dos Andes. Mas o Equador é um país muito pequeno e se um vulcão andino entra em erupção, às vezes as cinzas caem na costa. De Guayaquil, ao nascer do sol, você pode ver Chimborazo do rio Guayas, o vZulcão mais alto do país. É uma loucura: as montanhas estão presentes mesmo ao longe. Os vulcões são assustadores e bonitos ao mesmo tempo. Sinto que é essa tensão entre a vida e a morte, entre a beleza e a violência, que forma o pulso da minha literatura. Vejo tudo isso encarnado na paisagem andina, mas não só nela. Até agora, os vulcões foram importantes na minha narrativa (em mais alguns livros, em alguns livros a menos), mas os crocodilos dos manguezais costeiros também. No fundo, o que me interessa é como o território se torna um corpo e o corpo um território. Mitos e paisagens nos falam de um território sensível, vivo, que pensa em si mesmo. Do ponto de vista literário, sinto-me muito atraída por isso e sinto que as paisagens como símbolo e como corpo continuarão a ter presença na minha literatura, embora não saiba se será sempre a Cordilheira dos Andes ou a costa. O próximo romance que escrevo será ambientado nas Ilhas Galápagos, por exemplo.

Você poderia explicar como busca expandir o que chama no fim do livro de “geografia sentimental, de manguezais a vulcões”?
Uma paisagem, de certa forma, é a extensão do seu próprio corpo. É o limite e ao mesmo tempo a continuidade. Você pensa diferente, imagine diferente, se você mora em um lugar cercado por montanhas do que se você mora em uma ilha cercada pelo mar. O pensar e o olhar são formas de sentir. É lindo que o corpo esteja sempre sentindo, é um
presente e uma maldição. Não estou interessado em descrever a paisagem, mas em ver como uma montanha se instala em seu peito, em suas orações, em suas canções, em seus desejos e em seus medos. Essa é a geografia sentimental a que recorro quando escrevo.

“Voladoras” explora a dor e o êxtase de personagens femininas diante de catástrofes, crimes e um erotismo latente que catalisa transgressões. Os personagens são complexos e nos fazem experimentar disrupção e empatia. Como leitor de ficção latino-americana, você sente falta de personagens femininas feitas com essa ambivalência e sem uma certa passividade diante da violência do patriarcado?
Acho que tive sorte com minhas leituras e não me deparei com textos atuais em que as mulheres são vítimas passivas. Não é a literatura que me interessa ler, para começar, porque constrói personagens planos em que o sujeito identificado como “vítima” não consegue sair dessa categoria. Acho que é uma maneira fácil de pensar a violência, de acordo com o que o estabelecimento nos diz que uma vítima deve ser. A realidade é muito diferente: o mais aterrorizante para nós que já fomos vítimas de violência em algum momento é o fato de sabermos bem que essas feridas nos mudam, e não para melhor. A violência é contagiosa: uma vez que você a sofre, ela entra em você como um vírus. O maior perigo é se infectar e replicar o que foi feito com você. O desafio é encontrar uma forma de escapar desse contágio, para que uma pessoa que vivencia a violência de perto tenha vários conflitos internos que não dão espaço para a passividade.


Cada vez mais grupos estão crescendo para além dos espaços acadêmicos com o objetivo de ler romances escritos por mulheres, o que é diferente de pensar e militando em favor de uma literatura escrita por mulheres. Você e outras escritoras latino-americanas como Fernanda Melchor, Ariana Harwicz, Andrea Jeftanovic e Dolores Reyes lidaram com mundos violentos em seus textos, antes domínio da maioria dos escritores. Como você vê essa transformação, esse cenário?
Parece-me muito necessário por uma razão: que a literatura só pode ser enriquecida quando continuamos a acrescentar-lhe novas perspectivas, novas experiências humanas. O tamanho do humano, por muito tempo, foi masculino, branco, heterossexual, etc., mas isso era uma limitação. Se tudo o que lemos fossem esses homens brancos cis, só seríamos sensibilizados para essa experiência: a do homem branco, cis. E como somos pobres com experiências com isso. Grandes escritoras sempre escreveram apesar da falta de atenção à leitura, então a literatura de outro ponto de vista sempre existiu, mas agora a recepção mudou e os leitores querem ler as palavras de corpos que não foram ouvidos. Com isso, não me refiro mais apenas às mulheres que escrevem, mas às mulheres não brancas, racializadas e do sul global. A razão pela qual os leitores querem ler esses autores não é apenas política, mas também estética e filosófica: interessam-me outras formas possíveis de imaginar e pensar um território sensível e, para isso, preciso acessar outra linguagem, que é a que habita escritos dissidentes e não canônicos. Há a poesia do futuro.

Além do romance “Mandíbula”, você tem um livro de poemas publicado no Brasil. Como a poesia permeia sua prosa?
Sim, chama-se “História do leite” e foi publicado pela Jabuticaba, uma bela editora, com tradução de Ayelén Medail. Para mim, a poesia é tudo na escrita: é o próprio espírito da escrita. Não é apenas um formato: a poesia excede seu formato preferido, o poema. Podemos encontrar poesia em romances, em ensaios, em canções. Poesia é a palavra que dança uma canção nunca antes ouvida. É isso que nós, escritores, tentamos, eu acho: encontrar palavras que de repente nos revelem uma imaginação alternativa, um pensamento pungente.

É perceptível uma construção, tanto em “Mandíbula” quanto em “Voladoras”, de uma ética radical sobre o valor da apropriação das mulheres como agentes de violência, escapismo e fantasia diante de traumas e desigualdades sociais e sexuais. Você vê a arte como esse espaço de transformação da realidade?
A arte transforma o mundo a cada segundo de nossa existência, mesmo que não pareça no meio da noite. Sem arte, como diz Zurita, a humanidade pereceria, e isso porque, por exemplo, quando escrevemos, compomos ou pintamos, estamos furiosamente em busca da beleza em meio ao desastre. A arte não ignora o desastre, não é uma porta pela qual escapamos. Não me interessa arte escapista, se é que existe isso. A arte sempre fala do centro do desastre para nos lembrar que também somos nós que escrevemos poemas, compomos canções e pintamos quadros. Isso não nos escapa: nos faz olhar para o mal com responsabilidade, com uma ética, e essa ética é proteger o delicado, proteger o belo. Colaborou Ludimila Moreira