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Autor de "O pequeno príncipe", Saint-Exupéry foi piloto de correio aéreo e de guerra, sofreu acidentes graves e desapareceu em pleno voo durante a Segunda Guerra Mundial.

crédito: AFP

O escritor e piloto francês Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944) é conhecido em todo o planeta por “O pequeno príncipe”, lançado há 80 anos e um dos livros mais lidos e traduzidos de todos os tempos. Mas a maioria dos leitores pouco sabe que por trás do menino que veio do asteroide B612 está a incrível e épica vida do escritor, que ao longo de três décadas foi piloto de correio aéreo e de guerra, sofreu acidentes graves e desapareceu em pleno voo durante a Segunda Guerra Mundial. Ele também foi popular no Brasil nos anos 1930. Mais de uma década antes de sua obra maior, lançada em 1943, Saint-Exupéry começou a publicar livros sobre suas trajetórias no céu, como “Correio sul”, “Voo noturno” e “Terra dos homens”, obras que foram ofuscadas pelo grande êxito de “O pequeno príncipe”.

Naquela época, nos primórdios da aviação e do correio aéreo, voar era uma proeza, uma viagem muito perigosa, porque os primeiros aviões eram precários, inclusive a cabine era aberta e eram poucos os instrumentos de bordo. As panes eram muitas, principalmente sob intempéries. O piloto, além da coragem, tinha que entender de mecânica também, porque viajava sozinho e precisava fazer os consertos necessários. Foi nessas condições que Saint-Exupéry começou sua carreira nos ares. Com o alistamento militar, em 1921, o futuro piloto-escritor foi incorporado ao Segundo Regimento de aviação de Estrasburgo, na França.

Em 1926, um antigo professor o indicou à companhia Latécoère, que começou a fazer correio aéreo até as então colônias francesas no Norte da África, como Argélia e Marrocos, e queria estender o serviço até a América do Sul. Após temporada no Saara, Saint-Exupéry foi enviado para uma missão mais distante, a América do Sul. Em 1929, ele seguiu para Buenos Aires como chefe da sucursal da companhia, após atravessar o Atlântico de navio, já como funcionário da Aèropostale, novo nome da Latécoère. Os aviões não tinham a autonomia de voo de hoje, não conseguiam atravessar o Atlântico e eram transportados de navio da África para a América do Sul. Necessitavam de escalas para manutenção e abastecimento em cidades da extensa costa brasileira.

Exupéry trabalhou na implantação do correio aéreo entre Natal e o Chile. Mesmo com o pouco tempo que esteve na América do Sul, entre o fim da década de 20 e o início da década de 1930, ele ficou famoso nas cidades por onde passou. Com seu nome de difícil pronúncia para os brasileiros, ficou conhecido como “Zeperri”. Nesta época, o piloto deu início também aos seus voos literários. Em 1929, como diretor da companhia aérea em Buenos Aires, na Argentina, lançou o seu primeiro livro de ficção, “Correio sul”, ainda na época dos aviões com cabine aberta e voo solo. O protagonista é o piloto Jacques Bernis, que narra suas agruras na rota postal que liga a Europa ao sul da África.

 

AUTOBIOGRÁFICO

Em 1931, Saint-Exupéry lançou “Voo noturno”, obra que agora ganha nova edição no Brasil pela editora Grua Livros, com tradução de Mônica Cristina Corrêa, doutora em língua e literatura francesa e especialista na vida e na obra de Saint-Exupéry. O prefácio, como na primeira edição, é de ninguém menos do que o escritor e editor francês André, Gide (1869-1951), Nobel de Literatura de 1947 e fundador da Gallimard, uma das mais importantes editoras francesas.

O cenário de “Voo noturno” é a América do Sul. É um romance autobiográfico que tem Fabien como protagonista, piloto que faz voos noturnos no correio entre o sul da Patagônia e Buenos Aires. Voar à noite aumentava muito o risco por causa da precariedade dos aviões. Sem os temidos voos noturnos, entretanto, o correio aéreo não poderia concorrer com o transporte terrestre e marinho de encomendas. “Se no romance anterior, 'Correio sul', Saint-Exupéry surpreende o leitor com cenas que deixam perceber cabines de aviões abertas, neste segundo romance já são mencionados, por exemplo, os radionavegadores”, os pilotos já não viajavam mais sozinhos, conta Mônica Corrêa.


TEMPESTADE

O leitor que fizer um exercício de imaginação e levá-la ao espaço aéreo de Fabien em “Voo noturno” percebe o quanto o mundo de Exupéry e de outros pilotos era uma aventura temerária, dependendo de comunicação precária por rádio de ondas curtas. Uma tempestade varre a Patagônia argentina entre a Cordilheira dos Andes e o Atlântico. Fabien e o radionavegador se veem presos nesse caos. O radionavegador conta: “Presos a treze mil metros acima da tempestade. Navegamos totalmente a oeste para o interior, pois estávamos derivando sobre o mar. Abaixo de nós tudo está fechado. Ignoramos se estamos ainda sobrevoando o mar. Comuniquem se a tempestade se estende até o interior. (...) Buenos Aires mandou responder: – Tempestade geral no interior. Quanto lhes resta de combustível? – Uma meia hora. (…) A tripulação estava condenada a afundar em menos de trinta minutos, num ciclone que a arrastaria até o solo”.

Uma característica impressionante de “Voo noturno” é a postura de Rivière, o chefe rigoroso de Fabien e dos demais pilotos que exagera no senso de dever e, por isso, atropela riscos e perigos para combater o medo e estimular a coragem de cada um. André Gide comenta no prefácio: “Rivière insufla em seus pilotos sua virtude, exigindo deles o máximo, obriga-os à proeza. Sua implacável decisão não tolera a fraqueza e, para ele, a mínima falha é punida, num primeiro momento parece desumana, excessiva. Mas é às imperfeições que ela se aplica”. Gide destaca também o senso de dever: “Cada um dos personagens deste livro é ardente e totalmente devotado ao que deve fazer”.

E nas palavras do próprio Rivière: “Eu o [piloto] estou salvando do medo. (…) Essa resistência que paralisa os homens diante do desconhecido. Se eu lhe der ouvidos, se o lamentar, se levar a sério a sua aventura, ele acreditará que está voltando de um território de mistério, e é somente do mistério de que se tem medo. É preciso que homens desçam nesse poço escuro, e subam novamente, e digam que nada encontraram. É preciso que esse homem desça no coração mais íntimo da noite”.

 

LUZES

É em meio aos riscos dos voos noturnos diante da precariedade dos aviões e das intempéries frequentes que Saint-Exupéry conta seus sentimentos pelas palavras do narrador de “Voo noturno”, visto do alto, entre luzes e cores. “E, agora, no coração da noite como um vigia, ele [o piloto Fabien] descobre que a noite mostra o homem: esses apelos, essas luzes, essa inquietude. Essa simples estrela na sombra, o isolamento de uma casa. Uma se apaga: é uma casa que se fecha sobre o seu amor. Ou sobre seu tédio. É uma casa que para de dar sinal ao resto do mundo. Eles não sabem o que o espera, esses camponeses acotovelados à mesa diante do candeeiro: eles não sabem que os seus desejos levam muito longe, na grande noite que os encerra, mas Fabien o descobre depois de ter percorrido mil quilômetros e sentido ressacas profundas elevarem e baixarem o avião que respira, ter atravessado dez temporais, como países em guerra, e entre eles, clarões de luz, e depois ganhado aquelas luzes, uma após a outra, com o sentimento de ter vencido. Aqueles homens acreditam que os seus candeeiros luzem para uma mesa humilde, mas a oitenta quilômetros deles já somos tocados pelo apelo daquela luz, como se eles a balançassem desesperados, de uma ilha deserta, diante do mar”.


‘LINDO DEMAIS’

O piloto segue em seus devaneios: “Fabien pensava ter chegado a limbos estranhos, pois tudo se tornou luminoso, suas mãos, suas roupas, suas asas. Pois a luz não descia dos astros, mas emanava, abaixo dele, em torno dele, daquelas provisões brancas. Aquelas nuvens abaixo dele devolviam toda a neve que recebiam da lua. As da direita e da esquerda também, altas como torres. Circulava um leite de luz, no qual a tripulação se banhava. Fabien, virando-se para trás, viu que o radiotelegrafista sorria. (…) 'Lindo demais”, pensava Fabien. Ele vagava entre estrelas amontoadas com a densidade de um tesouro num mundo onde não havia nada mais, absolutamente, nada mais além dele. Fabien estava vivo. Parecendo aqueles ladrões de cidades fabulosas, murados no quarto dos tesouros do qual não saberão mais sair. Entre as pedrarias gélidas eles vagam, infinitamente ricos, mas condenados”.

E, por fim, a eternidade: “Fabien vaga sobre o esplendor de um mar de nuvens, à noite, porém, mais abaixo é a eternidade. Ele está perdido entre constelações que habita sozinho. Segura ainda o mundo entre as mãos e contra o peito o sacode. Encerra em seu manche o peso da riqueza humana, e arrasta, desesperado, de uma estrela a outra, o inútil tesouro, que será necessário devolver... Rivière imagina que um posto de rádio ainda o escute. Somente uma onda musical ainda liga Fabien ao mundo, uma modulação menor. Nenhum lamento. Nenhum grito. Mas o som mais puro que o desespero jamais concebeu.” Esperado em terra pelos companheiros de trabalho e pela esposa aflita, onde estará Fabien?

• “VOO NOTURNO”
• Antoine de Saint-Exupéry
• Tradução de Mônica Cristina Corrêa
• Grua Livros
• 128 páginas
• R$ 32,90