“As pessoas acima dos sete e abaixo dos setenta não são nada confiáveis, a menos que sejam gatos”. A frase é de Carmella, a irreverente amiga de Marian Leatherby, protagonista e narradora de “A corneta”. Elas têm uma longa estrada juntas, e a segunda conta com mais de noventa anos. Surda e já sem dentes, vive há mais de uma década com o filho e a nora na Cidade do México, em uma rotina nada estimulante. Com uma corneta auditiva, presente de Carmella, escuta escondida a decisão da família de enviá-la a um asilo. Na visão do neto, a avó mal pode ser classificada como ser humano e será despachada para a Fraternidade Poço de Luz, localizada no subúrbio.
A instituição é formada por habitações em formatos variados, de cogumelos a botas e bolos de aniversário, além de uma torre. O lar para idosas é dirigido com mão de ferro pelo casal Gambit, praticante da religião Cristianismo Interior, dedicada à luta contra todo tipo de impureza e ociosidade, além do culto ao trabalho. Refeições frugais e controle de todas as ações das idosas dão a tônica do lugar.
O romance aborda, entre outras coisas, o tema da inexistência social das pessoas idosas, mas o tom é jocoso, nunca lacrimejante. Nele, acompanhamos as peripécias de um grupo de oito mulheres dentro da bizarra organização. Faltam a elas os dentes para mastigar, mas sobram olhos e ouvidos. E eles serão fundamentais para toda a rocambolesca trama narrativa. Uma pintura a óleo exibida no refeitório instaura a curiosidade em Marian – o quadro exibe o rosto de uma freira que “pisca para mim com uma mistura desconcertante de zombaria e malevolência”. As aventuras dessa misteriosa mulher irão ocupar muitas (e divertidas) páginas, que incluem uma Abadessa travestida, tentativas de recuperação do Cálice Sagrado do Santo Graal, um bispo pedófilo, uma lobismulher, exércitos de abelhas e a chegada apocalíptica de uma nova era do gelo. “Este é o fim da minha história. Eu contei tudo fielmente, sem qualquer exagero de natureza poética ou não”, provoca a narradora, piscando o olho para os leitores com cumplicidade.
Muitas das cenas são acompanhadas por quinze ilustrações de Pablo Weisz Carrington, filho da escritora. Pintora, dramaturga e romancista, Leonora Carrington nasceu em 1917 na Inglaterra, filha de mãe irlandesa. Ainda jovem, relacionou-se com o pintor alemão Max Ernst, com quem viveu no sul da França. Após a prisão de Ernst pelos nazistas, Carrington fugiu para a Espanha, onde sofreu um colapso nervoso e foi internada em uma clínica psiquiátrica. Suas telas trazem figuras híbridas e uma atmosfera onírica, em sintonia com os princípios do movimento surrealista, interessado na sondagem do inconsciente e seus abismos. Após uma temporada em Nova York, a autora acabou se estabelecendo na Cidade do México, lugar em que viveu até sua morte, em 2011.
Publicado em 1976, o romance chega ao Brasil na tradução de Fabiane Secches. Da escritora inglesa, por aqui já circulavam “Lá embaixo” (2020), texto autobiográfico em que recupera sua passagem pelo hospício, traduzido por Alexandre Barbosa de Souza, e “Um conto de fadas mexicano e outras histórias” (2021) - organizado por Dirce Waltrick do Amarante e Nora Basurto e traduzido pela primeira -, dez relatos marcados pela veia fantasiosa. Em “A corneta”, Marian aprecia contos de fada e sonha conhecer a Lapônia, em um trenó puxado por cães de pelo branco. O desejo é inspirado no conhecido conto “A Rainha da Neve”, de Hans Christian Andersen: “A lua brilhava pela minha janela e eu não conseguia dormir, mas fiquei meio sonhando e meio acordada, um estado bastante familiar para mim a essa altura. Memórias de um passado distante surgiram como bolhas na minha mente e coisas que eu pensava ter esquecido havia muito tempo voltaram tão claras como se tivessem acabado de acontecer”.
É comovente adentrar o pensamento dessa velha-menina, que em tudo difere da visão de cadáver ambulante nutrida pela família. Dialogando com o conto do autor dinamarquês, protagonizado por duas crianças, a obra de Carrington também dá centralidade a sujeitos supostamente frágeis e tuteláveis, mas nesses textos os infantes, as mulheres e os idosos adquirem autonomia, tomando as rédeas da própria vida. Sono, sonho e vigília se fazem presentes, indicando a fluidez desses estados mentais, sem a preocupação de estabelecer limites entre verdade e fantasia. Com isso, a liberdade se instala, e embarcarmos nas bolhas de sabão do texto com grande prazer.
Como afirma no posfácio a escritora Olga Tokarczuk, o romance escapa a toda categorização e se refere “a coisas que estão escondidas, deslocadas e esquecidas”. Deslocamentos físicos e simbólicos estão por toda parte em “A corneta”, das viagens mirabolantes aos movimentos internos das personagens, além do trânsito entre passado e presente da narrativa. À diferença de um romance de formação - em que geralmente um indivíduo passa por processos de crescimento em direção à maturidade e sabedoria – as personagens já incorporaram muita experiência. São sábias, mas ninguém está interessado em ouvir o que pensam. Nesse sentido, surdos são os outros.
Daí a relevância do objeto dado pela mão amiga. No traço das ilustrações, não é difícil perceber a semelhança da corneta com uma trompa uterina - não mais abrigado no ventre, o órgão feminino agora se encontra do lado de fora. Ao fazer uso desse dispositivo, Marian adquire um poder inusitado ao capturar os sons do mundo exterior. Vale lembrar que, na perspectiva da sociedade, uma mulher velha é quase um corpo sem razão de ser, diante de sua incapacidade reprodutiva. Mas no romance a lógica se inverte, e os canais auditivos e reprodutivos espalham e fecundam outros elementos.
No belo ensaio “À escuta”, o filósofo Jean Luc Nancy afirma que o sonoro é da ordem da participação, da partilha e do contágio. Também Carrington dá a ver no relato a noção da escuta como ligação, vínculo, transmissão. Como naquela antiga brincadeira do telefone sem fio, em que o som das palavras se expande (e às vezes se modifica), Marian entra de novo na roda, de forma ativa. Com ela, a insurgência desse estranho exército, propagando um pouco de delírio e outro tanto de utopia nessa ciranda de mulheres velhas. Porque escutar é diferente de ouvir, e uma corneta às vezes não é só uma corneta.
Leia trecho
Embora a liberdade tenha nos chegado um pouco tarde, não temos intenção de abandoná-la outra vez. Muitas de nós passamos a vida com maridos dominadores e rabugentos. Quando enfim fomos liberadas deles, passamos a ser manipuladas por nossos filhos e filhas, que não apenas não nos amavam mais como nos consideravam um fardo e motivo de constrangimento e vergonha. Você acredita, mesmo nos sonhos mais selvagens, que agora que provamos a liberdade vamos nos deixar ser pressionadas por você e por seu companheiro depravado?
“A corneta”
• Leonora Carrington
• Tradução de Fabiane Secches
• Alfaguara
• 216 páginas
• R$ 69,90
Stefania Chiarelli é professora e pesquisadora de literatura brasileira na UFF. “Partilhar a língua – leituras do contemporâneo” (7Letras, 2022) é sua mais recente publicação.