A escritora francesa Annie Ernaux -  (crédito: catherine helie editions gallimard)

A escritora francesa Annie Ernaux

crédito: catherine helie editions gallimard

O conhecimento e a explicação do mundo

Frédéric-Yves Jeannet
Você é uma leitora extremamente atenta, precisa, e acho sua compreensão dos textos, seus e dos outros, muito esclarecedora. Além dos surrealistas e dos escritores do nouveau romance que você cita, quais foram os autores antigos que a levaram a forjar essa escrita precisa, "cortante", como você diz, que caracteriza sua busca da verdade? Montaigne, talvez? Rousseau?

Annie Ernaux
Gostaria de começar pelo início, por aquilo que por muito tempo foi a leitura para mim, na infância e na adolescência, e até depois, e que aos poucos deixou de ser quando eu mesma me pus a escrever. A leitura foi outra vida na qual eu passava horas inteiras, fora do livro, sendo alternadamente Oliver Twist, Scarlett O'Hara, todas as heroínas dos folhetins que lia.
Depois, foi conhecimento e explicação do mundo, do eu. Ano passado, ao reler Jane Eyre, que não lia desde os meus doze anos e que havia lido numa edição resumida, tive a impressão inquietante de "reler a mim mesma", menos de reler uma história e mais reencontrar algo que tinha sido sido posto em mim por essa voz do livro, pelo "eu" da narradora, algo que me constituiu. Pensei o mundo através do texto completo de Jane Eyre, quando até então tinha certeza de ter sido cativada e tocada apenas pela história de Jane quando criança, na pensão do infame Blackhurst. É profunda, creio, a marca desses livros no meu imaginário, obviamente na minha aquisição da linguagem escrita, nos meus desejos, meus valores, minha sexualidade. Busquei realmente tudo na leitura. E depois a escrita assumiu essa função, preenchendo minha vida, tornando-se o lugar de busca da realidade que, antigamente, eu situava nos livros.

Li muito, sem distinção, Delly, Élisabeth Barbier e suas Gens de Mogador (Pessoas de Mogador), Cronin, Daniel Graya – lado de O morro dos ventos uivantes, As flores do mal. Quanto a isso, uma coisa que me surpreende é que os textos cuja beleza e força eu reconheceria mais tarde não foram os únicos a desempenhar um papel na formação do meu ser, na minha imaginação adolescente. Talvez – a não ser quando havia uma perturbação, como com A náusea, As vinhas da ira – nem tenham influenciado tanto quanto os romances que hoje acho impossíveis de ler, a menos que se leia sem os levar a sério, e de que não tenho qualquer lembrança. É o recalque da leitura. Além disso, eu lia em um contexto que por muito tempo foi de escassez, livros caros, escola particular religiosa exercendo um controle espantoso sobre a leitura, o qual menciono em A vergonha, biblioteca municipal com um atendimento arrogante. Por isso lia tudo que me caía nas mãos, com um apetite difícil de imaginar hoje, com uma cobiça multiplicada pela proibição (La Maison Tellier [A casa Tellier], Uma vida, de Maupassant, que minha mãe estava lendo quando eu tinha doze anos). Sobretudo pela dificuldade de ter acesso aos livros. Assim, me lembro de ter lido aos quinze anos O pai Goriot e O corcunda de Notre-Dame na coleção dos clássicos Hatier, por não conseguir encontrar uma edição completa. Essa leitura "esburacada", de textos ao mesmo tempo públicos e escondidos, me deixava feliz e insatisfeita. Quando vi, nesse mesmo pequeno volume d'O pai Goriot, uma lista com as obras de Balzac em que constava Em busca do absoluto, tive uma vontade louca de ler esse livro: ele não existia na edição de clássicos ... Eu leria Em busca do absoluto apenas aos vinte anos, quando já estava na faculdade, e ficaria aliás bem decepcionada em relação à minha antiga expectativa.

É claro que eu não me interessava pela escrita em si. Não dissociei de modo algum o conteúdo da forma até começar meus estudos literários. Em determinado momento, gostava tanto de Sartre quanto de Steinbeck, Flaubert. Depois Breton, Virgínia Woolf, Perec. E tenho a impressão de que, ainda hoje, é menos o tipo de escrita que me interessa, que me marca, e mais o projeto que ela quer realizar, que se realiza através dela. Se o projeto me é estranho, nada acontece, como o de Gracq, que não me toca, e o de Duras, em menor medida.

 

Sobre a autora

Prêmio Nobel de Literatura em 2022, a escritora Annie Ernaux foi a primeira mulher francesa a receber a honraria. Ela nasceu em 1940, em Lillebonne, e estreou em 1974 com o romance autobiográfico "Les armoires vides" ("Armários vazios", ainda sem lançamento no Brasil), em que detalha um aborto que sofreu quando era estudante. Apesar de uma obra vasta, só recentemente ela passou a receber versões de seus livros no país, com o lançamento de "Os anos", publicado pela editora Três Estrelas em 2019. Com o fechamento da primeira casa, a editora Fósforo absorveu a missão de traduzir Ernaux para o público brasileiro, e já publicou por aqui trabalhos como "Paixão simples" (1991), "A vergonha" (1997) e "O lugar" (1983), livro responsável por levá-la à fama.

"A escrita como faca e outros textos" se divide em três capítulos. O primeiro é “Vingar minha raça” (2022), o discurso que ela proferiu quando aceitou o Nobel, em que apresenta um resumo de sua trajetória, com a origem na classe operária e camponesa da França, e suas motivações para a escrita. O segundo texto, que dá nome ao livro, é uma entrevista feita ao longo de meses com o escritor Frédéric-Yves Jeannet, entre 2001 e 2002, em que fala sobre o ato de escrever. O último texto, "Retorno a Yvetot”, é uma conferência de 2012, que Ernaux proferiu na cidade de 11 mil habitantes na Normandia, onde viveu com os pais, que possuíam um pequeno comércio, e de onde saiu para cursar a universidade.