Maior nome da literatura brasileira, Machado de Assis (1839-1908) começou a escrever cedo, com apenas 15 anos, e só parou poucos meses antes de morrer, aos 69 anos. No mais de meio século em que esteve ativo, produziu de tudo, intensamente: romances, poesias, contos, crônicas e peças de teatro. Mas como alertava o poeta francês Arthur Rimbaud – contemporâneo de Machado –, ninguém é sério aos 17 anos.


Foi justamente movido pelo desejo de acompanhar a evolução literária de Machado de Assis, do jovem que se arriscava em poemas, críticas teatrais e pequenos textos publicados em jornal ao gigante da literatura mundial que o professor Hélio de Seixas Guimarães, livre-docente de literatura brasileira no departamento de Letras Clássicas e Vernáculas na Universidade de São Paulo (USP), idealizou a coleção “Todos os livros de Machado de Assis”, publicada pela editora Todavia. “Costumo dizer que Machado de Assis não nasceu pronto: ele se constituiu como esse autor imenso que conhecemos a partir de muito talento, claro, mas também de muito trabalho e dedicação”, conta o professor.


São 26 volumes, entre poesia, teatro, conto e romance, com tudo o que Machado escreveu e publicou em livros ao longo de sua vida. Estão lá clássicos como “Quincas Borba”, “Dom Casmurro” e “Memórias póstumas de Brás Cubas”, acompanhados de raridades como “Desencantos”, uma peça de teatro de 1861 que marcou a estreia de Machado de Assis em livros, e o último romance, “Memorial de Aires”, de 1908. Livros póstumos, como “A semana” (1914) e “Casa velha” (1944), além das inúmeras coletâneas de contos criadas por editoras ao longo dos anos, não entraram na seleção.


A cronologia facilita ao leitor acompanhar como os temas desenvolvidos pelo fundador da Academia Brasileira de Letras se desenvolveram ao longo de sua carreira, como questões de raça e gênero, além de aspectos políticos e da história do Brasil. Afinal, Machado testemunhou e relatou na sua obra as mudanças do país, como o fim da escravidão e a proclamação da República. Também foi respeitada a pontuação dos textos originais, ainda que causem estranheza aos leitores de hoje. “Penso que a coleção, que traz tudo aquilo que Machado escolheu para figurar em seus livros, permite conhecer o escritor em todos os seus momentos, considerando também seus altos e baixos e suas contradições”, diz Guimarães (leia entrevista ao lado).


Uma equipe de mais de 20 pessoas – entre designers, leitores críticos, preparadores, consultores, revisores técnicos e editores – se debruçou sobre o projeto ao longo de quatro anos, que contou com o apoio do Itaú Cultural. “O maior desafio foi dar conta da quantidade e variedade dos livros. São 25 livros, mais um volume extra, que somam alguns milhares de páginas e mais de um milhão de palavras”, detalha o professor.


O trabalho pode ter sido intenso, mas o resultado certamente valeu a pena. O tratamento é de luxo, e o projeto gráfico foi baseado em uma pesquisa nos originais do escritor. Batizada de Machado Serifada, uma nova família tipográfica foi desenvolvida exclusivamente para os livros. A tiragem da caixa completa é limitada a apenas 500 exemplares. A partir do primeiro semestre do ano que vem, os livros começarão a ser vendidos de forma avulsa. 


*Estagiária sob supervisão do editor João Renato Faria

 

Os títulos da coleção

Desencantos (1861);
Teatro (1863);
Quase ministro (1864);
Crisálidas (1864);
Os deuses de casaca (1866);
Falenas (1870);
Contos fluminenses (1870);
Ressurreição (1872);
Histórias da meia-noite (1873);
A mão e a luva (1874);
Americanas (1875);
Helena (1876);
Iaiá Garcia (1878);
Memórias póstumas de Brás Cubas (1881);
Tu só, tu, puro amor… (1881);
Papéis avulsos (1882);
Histórias sem data (1884);
Quincas Borba (1891);
Várias histórias (1896);
Páginas recolhidas (1899);
Dom Casmurro (1899);
Poesias completas (1901);
Esaú e Jacó (1904);
Relíquias de casa velha (1906);
Memorial de Aires (1908);
Volume extra: Terras, Compilação para estudo (1886).

 

Coleção "Todos os livros
de Machado de Assis"
Machado de Assis
Editora Todavia
R$ 1.599,90
Disponível no site todavialivros.com.br

 

‘‘O maior desafio foi dar conta da quantidade e variedade dos livros’’

 

Como surgiu a ideia de publicar uma caixa com todos os livros do Machado de Assis?
A coleção começou a se materializar em 2018, quando organizei na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, com a colaboração de alunos da USP, uma exposição com todas as primeiras edições dos livros de Machado de Assis pertencentes ao acervo da BBM. No processo de pesquisa e na montagem da mostra, em que os livros foram apresentados em ordem cronológica de publicação, eu me surpreendi com a variedade do que Machado produziu e com a amplitude da sua carreira literária. Isso mesmo depois de tantos anos de convivência com os escritos de Machado de Assis. Em geral, conhecemos e consideramos só o que veio a partir das "Memórias póstumas de Brás Cubas", que saiu em livro em 1881. Mas "Brás Cubas" é o 14º livro em que Machado de Assis estampou seu nome na capa como autor. Seu primeiro livro, com a peça de teatro "Desencantos", havia sido publicado 20 anos antes, em 1861. Depois disso foram mais 12 livros de sua autoria, incluindo livros de teatro, poesia, conto e romance, até chegar a "Brás Cubas". E depois de "Brás Cubas" vieram outros 11. Achei que a publicação em ordem cronológica de todos os livros que Machado de Assis lançou entre 1861 e 1908 poderia ajudar a entender o processo de formação do escritor e a compreender como os vários gêneros se entrelaçam em seus escritos. Penso que a coleção, que traz tudo aquilo que Machado escolheu para figurar em seus livros, permite conhecer o escritor em todos os seus momentos, considerando também seus altos e baixos e suas contradições.

Quais foram os maiores desafios desse projeto?
O maior desafio foi dar conta da quantidade e variedade dos livros. São 25 livros, mais um volume extra, que somam alguns milhares de páginas e mais de um milhão de palavras. Outro desafio grande foi a definição dos critérios para o tratamento dos textos, decidir o que atualizar e o que manter conforme as edições escolhidas como referência, em geral a última publicada em vida do autor. Em linhas gerais, a decisão foi atualizar a ortografia, anotando no início de cada volume as variantes utilizadas por Machado de Assis que caíram em desuso, mas continuam registradas no "Vocabulário ortográfico da língua portuguesa", e manter a pontuação que está nas edições tomadas como base, mesmo quando ela não está em conformidade com os usos atuais. Acreditamos que a pontuação adotada por Machado em seus textos sugere um ritmo de leitura, hesitações, ênfases e ironia, que merecem ser preservadas e conhecidas. Fora isso, a equipe que trabalhou no projeto foi de uma dedicação extraordinária, e ler e reler Machado de Assis é sempre um prazer.

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