Onde Clarice Lispector, Joan Didion, Carolina de Jesus, Juan Rulfo, Umberto Eco, Art Spiegelman, Ziraldo e dezenas de outros autores se encontram? Na estante de Rodrigo Casarin. E nas páginas de “A biblioteca no fim do túnel”, o primeiro livro do jornalista especializado em literatura. Lançada pela editora Arquipélago, a obra reúne 55 crônicas sobre hábitos, tendências e impasses de “um leitor em seu tempo” como define o subtítulo.

De forma incisiva e sem meias-palavras, Casarin trata de assuntos que passam pela cabeça, ao menos uma vez na vida, de todos os que mantêm o hábito de ler. Como, por exemplo, “quando parar a leitura e dar um pé na bunda do livro”. Ou a recorrente discussão sobre o número insuficiente de interessados em conhecer a vastidão e diversidade da literatura brasileira contemporânea.

As crônicas que conseguem entrelaçar aspectos da realidade com as obras de grandes autores estão entre os pontos altos do livro. É o caso do texto que lembra “Os dragões”, conto do mineiro Murilo Rubião, para analisar comportamentos sociais retrógrados. “Chegassem hoje, esses dragões se surpreenderiam e sofreriam ainda mais com o contraditório avanço dos retrocessos”, comenta Casarin.

Outro bom momento é a articulação estabelecida entre a violência cotidiana brasileira e o espanto provocado pela autora de “A hora da estrela”. “Com Macabéa, Clarice (Lispector) nos mostrou que a vida é um soco no estômago e que morrer é um instante”, lembra Casarin, antes de fazer uma ressalva: “Mas Clarice também ressaltou que Macabéa ‘pertencia a uma resistente raça anã teimosa que um dia vai talvez reivindicar o direito ao grito’. O Brasil já saiu da cartomante e está prestes a descer da calçada”, escreveu o jornalista ainda durante a pandemia, em dezembro de 2020, antes do início da vacinação contra a Covid no país.

Nascido em 1987 em São Paulo, Rodrigo Casarin edita desde 2015 a Página Cinco, coluna de livros no UOL que já se desdobrou em podcast e newsletter. No posfácio de “A biblioteca no fim do túnel”, o colega jornalista Diego Assis define Casarin como “um influenciador raiz, um cara que te conquista por ser tão apaixonado como eu e você por esse troço medieval chamado livro, que não tem vergonha em admitir suas limitações e, acima de tudo, que te encanta e desperta com as descobertas que faz a cada dia e compartilha com a maior generosidade com os fiéis leitores”.

ENTREVISTA Rodrigo Casarin

“Precisamos falar mais sobre o prazer do que sobre a importância de ler”

Quais as maiores mudanças de quando você começou a escrever sobre livros e leituras até os dias de hoje?
Creio que tenha me tornado um leitor mais plural, que passeia por diferentes tipos de literatura, que dá atenção para autores que não estariam na minha mira se não fosse por questões profissionais. Por outro lado, hoje tenho maior clareza sobre aquilo que realmente me interessa, a respeito do que pretendo me dedicar com mais afinco – a literatura latino-americana, por exemplo. Olhando em retrospecto, me parece também que as leituras ficaram mais complexas, levando em conta nuances para os quais não me atentava uma década atrás.

O que o atrai e o que o afasta nas primeiras páginas de um livro de ficção?
Começos com frases, imagens cenas ou ideias banais acompanhadas de um estilo desleixado são fatais. Condescendência e complacência também costumam ser péssimos indícios. O que me atrai vai justamente na linha oposta: uma construção instigante, uma provocação, uma partida que já o coloque fora de uma área de conforto ou confronte o que até então parecia uma verdade talhada em pedra.

Você afirma, em uma das crônicas, que segue “com mais dúvidas do que respostas” em relação ao chamado “leitor ideal”. Quais são essas dúvidas?
Cada vez mais confronto minhas certezas. Me parece uma prática saudável, que me leva a refletir sobre o que realmente penso e quero. Então, boa parte do que vejo como característica de um leitor ideal pode também estar na berlinda, sempre tendo que resistir a eventuais questionamentos. Dogmas não combinam com a arte, por isso busco me afastar cada vez mais deles. E há as dúvidas mais comezinhas caras ao trabalho: qual livro ler? Fiz a melhor escolha? Fui justo numa resenha? Consegui passar para o leitor aquilo que gostaria de transmitir? Tenho feito um trabalho minimamente coeso e coerente? São perguntas que sempre me acompanham.

Você cita, em uma das crônicas, uma declaração de José Mindlin: “Queria inocular o vírus da leitura em qualquer pessoa que se aproximasse dele.” Como inocular esse vírus?
Adoraria ter uma resposta definitiva para essa pergunta, mas acho que ela não existe. Em todo caso, muito do meu trabalho é uma tentativa de espalhar esse vírus dentre aqueles que não dão bola para a leitura. Minha aposta é que sempre que colocamos a literatura fora de qualquer pedestal, tratamos dela sem cerimônia, aproximamos um pouco mais os livros de uma gama imensa de potenciais leitores. A leitura precisa ser vista como uma atividade tão divertida quanto assistir a uma série, jogar bola ou tomar umas biritas no boteco. Precisamos falar mais sobre o prazer do que sobre a importância de ler.

Um dos pontos altos do livro são as crônicas que fazem conexões entre livros e fatos ocorridos no país, como em “Clarice, Brasil: a vida é um soco no estômago, morrer é um instante”. Como o Brasil permeia as suas leituras?
Esse é um esforço para conectar a literatura com fatos importantes do noticiário. Mostrar para muita gente que, veja só, ler Clarice Lispector ou Carolina Maria de Jesus pode ajudar a compreender não só o país em que vivemos, mas aflições que seguem a nos atormentar mesmo décadas após a morte dessas autoras. Criar paralelos entre o que encontro nos livros da biblioteca e o que vejo no mundo lá fora é um dos caminhos que encontrei para aproximar esses nomes de muita gente que provavelmente jamais lhes dariam atenção. E, convenhamos, nos últimos anos andou difícil separarmos o que se passava no Brasil de qualquer atividade que fizéssemos.

O maior best seller da literatura brasileira contemporânea é “Torto arado”. O que fez o livro atrair tantos leitores? Como fazer para que o romance de Itamar Vieira Junior não seja um fenômeno isolado?
A linguagem empregada por Itamar, a temática do livro e o momento que o país atravessava quando ele foi lançado contribuíram para esse sucesso estrondoso, acredito. “Torto Arado” coroou uma fase bastante interessante da literatura brasileira. Penso também em “Tudo é rio”, de Carla Madeira, que já vendeu seus muitos milhares de exemplares. Mas não só.Não é incomum termos notícias de bons autores vendendo 8, 10, 15, 20 mil exemplares com seus contos ou romances. Conceição Evaristo virou uma figura pop, reconhecida por muita gente que não dá tanta bola assim para livros. Diversas editoras passaram a investir também na publicação de ficção contemporânea, o que é outro bom indicativo.
Dentre os leitores a literatura brasileira vive um bom momento. E é mais importante termos diversos autores vendendo bem do que só um ou outro nome apresentando número estrondosos.
Agora, o desafio crucial permanece: como fazer com que o Brasil tenha mais leitores? Precisamos aumentar o número de pessoas potencialmente interessadas em ler os autores brasileiros, daí o aumento nas vendas e eventuais fenômenos aparecerão como consequência.

O que faz para evitar a dispersão durante a leitura?
Deixar o celular em outro cômodo da casa certamente ajuda. Estar num lugar em que as pessoas ao redor compreendam que é de bom-tom não incomodar quando alguém está mergulhado num livro também ajuda. E ler em momentos tranquilos do dia contribui pra caramba. Adoro ler logo pela manhã ou de madrugada, principalmente os livros que leio mais por prazer do que por obrigação profissional.

Quais as maiores descobertas que o blog e o podcast trouxeram para você?
Vou responder com um clichê – clichês não se tornam clichês por acaso, pondero em minha defesa. Mais do que autores ou literaturas, esses anos todos trabalhando com livros no blog, na coluna, no podcast e na newsletter me mostraram o quanto que há de gente pra caramba também apaixonada por esse universo. Adentrar ao mundo de cada leitor, de cada ouvinte, é sempre uma grande descoberta também para mim. É ótimo ter a companhia de tanta gente boa.

Qual foi o último grande livro que você leu? E o último grande livro que releu?
Sempre difícil essa. Gostei demais de enfim conhecer a literatura de Rosa Montero com o seu “O perigo de estar lúcida”. “Cinzas na Boca”, de Brenda Navarro, confirmou que a mexicana é uma autora que merece a nossa atenção. E não chegou a ser exatamente uma releitura, mas outro dia estava passeando por algumas páginas de "Dom Quixote", um livro inesgotável.

Como organiza a sua biblioteca? O que não cabe mais nela e o que sempre permanecerá em suas estantes?
Falar em organização nessa zona aqui chega a ser um exagero, mas tento seguir uma lógica mínima. Literatura brasileira, não ficção narrativa e livros teórico e de ensaio estão ordenados numa metade. Quadrinhos, literatura estrangeira e os livros da minha esposa estão na outra metade – os dela indiscutivelmente mais organizados do que os meus.
Aos poucos a literatura latino-americana, acompanhada de certo auxílio das literaturas da França e do Japão, tem conquistado um espaço maior e colocado muita coisa de países como Estados Unidos e Inglaterra para fora. Ficções rocambolescas e muitos best-sellers que precisei resenhar já não param mais nessas estantes. Por outro lado, que não mexam nas diferentes edições de “Dom Quixote”, nos Gracilianos, na Clarice, no Rubião, na Yoko Ogawa, no Cormac McCarthy, na Ariana Harwicz, na Samanta Schweblin, na Fernanda Melchor, no Borges...

“A biblioteca no fim do túnel: Um leitor em seu tempo”
• Rodrigo Casarin
• Arquipélago
• 208 páginas
• R$ 49,90

 

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