Passados quase dois anos desde o seu surgimento, e no momento de encerramento de mais um dos seus ciclos (os processos de renovação se dão anualmente, mas agora está em curso uma transformação mais profunda), seria oportuno propor um balanço mais circunstanciado da coleção “Círculo de Poemas”, projeto surgido da parceria entre as editoras Luna Parque e Fósforo. Não resta dúvida: trata-se de um dos grandes acontecimentos editoriais do país no que diz respeito à poesia. Nada, nenhuma publicação do tipo, nenhum conjunto de livros foi tão relevante desde, pelo menos, o fim da “Ás de colete”, coleção publicada mais de uma década atrás pelas editoras Cosac Naify e 7Letras, e que revelava ao país uma nova e muito particular geração de poetas, cujos recursos e questões descortinavam outras sensibilidades e novas dimensões do trabalho poético. Esses novos autores eram apresentados junto a nomes já consagrados e a um ou outro escritor estrangeiro – a própria Marília Garcia, uma das editoras da coleção atual, despontou no bojo desse processo. O repertório posto em cena pelo “Círculo”, sob certos aspectos incomum ao plano de ações de “Ás de colete”, e o acerto – e até mesmo a coragem – de algumas escolhas da coleção explicam a singularidade e o destaque do trabalho.


Desde janeiro de 2022 a coleção entrega, primeiro em casa, para os seus assinantes, e logo depois nas livrarias, dois volumes por mês. Um livro de poemas e uma plaquete – os livros têm formato mais convencional e recolhem a produção de poetas de diferentes gerações, línguas e nacionalidades. A ênfase recai na produção contemporânea, mas há espaço para um clássico moderno (“Paterson”, de William Carlos Williams), para alguma poesia africana de língua portuguesa (duas coletâneas importantes de Ruy Duarte de Carvalho, enfeixadas sob o título “Ondula, savana branca”), a memória dos anos 1960 e da contracultura (“O fato e a coisa”, de Torquato Neto) e até um exercício de arqueologia poética (a coleção tem início com a republicação de “Dia garimpo”, de Julieta Barbara, livro modernista que conheceu uma única edição, de 1939).


As plaquetes, por sua vez, são publicações mais experimentais, feitas exclusivamente para a coleção – e quase que apenas por autores brasileiros – a partir de certas contraintes: no primeiro ano, os textos deveriam ser feitos a partir de uma imagem anterior ao século 20, escolhida de modo livre pelo autor; neste segundo, a partir de qualquer tipo de mapa. Ainda que o tom (e o alcance estético) das plaquetes varie muito, há um elemento lúdico a atravessar todas elas, mesmo quando armam-se em torno de matéria grave ou trágica. O lúdico, aqui, corresponde ao frescor e, nos seus melhores momentos, à surpresa e à novidade (ver, nesse sentido, “Robert Cornelius, fabricante de lâmpadas, vê alguém”, de Carlos Augusto Lima, “O pai do artista”, de Daniel Arelli, “De uma a outra ilha”, de Ana Martins Marques, ou ainda “Sal de fruta”, de Bruna Beber). A explicitação do artifício que está, bem ou mal, implicado em cada conjunto de poemas, a incorporação e a transformação ativa das regras do jogo conferem o aspecto de contraponto distraidamente criativo que as plaquetes, muitas vezes, têm em relação à solidez autônoma dos livros. Um outro aspecto também deve ser levado em conta na avaliação desses trabalhos: eles são poemas comissionados, feitos por encomenda, o que explica a maior liberdade que alguns autores demonstraram, permitindo-se experimentar (brincando) com formas e temas pouco usuais em suas trajetórias.


Para além, no entanto, das inúmeras possibilidades de associação que a estrutura dupla da coleção permite fazer, e nisso já residiria parte da originalidade do projeto, o que há de realmente novo no “Círculo de Poemas” está na sua curadoria. Mais especificamente nas linhas de força que, mais ou menos visíveis, parecem se destacar no conjunto (até aqui) dos livros escolhidos. Não que a coleção seja homogênea e o valor estético dos livros mantenha-se uniforme. Ou ainda que a sequência dos títulos e autores revele uma narrativa ampla e de sentido total. Ao contrário: a coleção é muito diversa. Num trabalho dessa proporção, com 48 publicações até dezembro de 2023, é natural que haja desníveis e até certa irregularidade.

Mas chama a atenção como, mesmo na heterogeneidade da proposta curatorial, que procurou de modo consciente afastar-se de elementos coesivos mais evidentes (a coleção não se volta para apenas uma geração de poetas, ou para uma determinada tradição nacional, para uma mesma atitude perante a linguagem, ou ainda para um único perfil racial ou de gênero), é possível encontrar e destacar traços que deixam ver certas inquietações poéticas, sobretudo formais, em comum. Antes, porém, de as discutir, algumas observações sobre o que se poderia chamar de uma pré-história da coleção.

Coleções de outras épocas

“Círculo de Poemas” inscreve-se numa respeitável tradição de empreendimentos editoriais que tiveram lugar no país nos últimos cinquenta anos. Um dos seus pontos fortes talvez seja a releitura atenta e a retomada, diferida, de certos aspectos de coleções de outras épocas. O próprio nome da coleção faz referência à extensa série de livros publicados pelo “Círculo do Livro”, projeto pioneiro das décadas de 1970 e 1980 que colocava em circulação, em volumes de capa dura e projeto editorial sóbrio, literatura contemporânea, autores brasileiros e estrangeiros. O caráter autossustentável da coleção, que funcionava a partir de um sistema de assinaturas e do envio de livros por correio, também está presente no “Círculo de Poemas”. A consolidação de uma base de leitores é capaz de garantir não só tiragens específicas quanto, principalmente, a aposta em títulos e autores menos conhecidos, ou ainda em livros mais abertamente experimentais, de público, num primeiro momento pelo menos, mais restrito.
Outra coleção que parece ecoar no “Círculo de Poemas” é a “Claro enigma”, editada pela Livraria Duas Cidades, sob responsabilidade de Augusto Massi, nos anos 1980 e no início da década seguinte. Nela, junto aos jovens poetas de então (Ronaldo Brito, Paulo Henriques Britto, João Moura Jr., Age de Carvalho), foram publicados livros que reuniam os trabalhos de poetas importantes no panorama brasileiro daquele momento, mas cujas obras encontravam-se dispersas, praticamente inacessíveis em edições artesanais ou de pequeno porte. É o caso de Sebastião Uchoa Leite, Orides Fontela, Francisco e Maria Lúcia Alvim, Duda Machado, poetas que, quando da entrada na coleção, acrescentaram aos livros anteriores material inédito. A seu modo, “Círculo de Poemas” procura continuar essa tarefa dupla de prospecção do futuro e inventário do passado recente.


A publicação da poesia reunida de Lu Menezes e Donizete Galvão, nesse espírito, vem preencher lacuna editorial importante, ao mesmo tempo que sinaliza a continuidade de um gesto de atenção à história mais recente da lírica brasileira. Como antes “Claro enigma” pôde fazer, trata-se aqui de reapresentar, com foco nas novas gerações de leitores, vozes incontornáveis que, via de regra, falavam apenas em surdina, para poucos ouvidos. A máquina da coleção como caixa de ressonância.


A história das coleções de poesia dá voltas sobre si. A imagem do círculo é precisa. Além de indicar a passagem, de mão em mão e de boca em boca, dos livros e dos poemas que vão sendo publicados em série, aponta também para as retomadas propostas de um projeto a outro. A já referida “Ás de colete” recuperou, a seu tempo, certos elementos de “Claro enigma” – alguns nomes, inclusive, comparecem nas duas coleções, como os de Age de Carvalho e de Chico Alvim, poeta cuja obra ganha, no início do novo milênio, mais um avatar – as “Poesias reunidas” devém “Poemas (1968 – 2000)”, acrescidas de uma coletânea inédita, “Elefante”. Os processos de repetição em diferença que marcam a relação entre essas coleções terão no “Círculo” um novo capítulo.


Aqui, cabe salientar uma diferença entre as coleções. O ritmo das publicações é bastante distinto. Enquanto “Claro enigma” e “Ás de colete” soltavam apenas alguns títulos por ano, com longos intervalos entre os livros, o “Círculo de Poemas” entrega por mês dois volumes (um livro + um plaquete) ininterruptamente. Como se vê, o desafio e os percalços são consideravelmente maiores – se não financeiramente, uma vez que o sistema de assinaturas garante certa estabilidade, do ponto de vista editorial (pensando na seleção do material e na preparação de 24 títulos por ano) os riscos são outros.
Se “Ás de Colete”, em especial na série de bolso, privilegiou a novíssima leva de poetas que se afirmava (Tarso de Melo, Fabiano Calixto, Angélica Freitas, Ricardo Domeneck, Marília Garcia), transformando-se em vitrine e trincheira da nova geração – cujos textos, nas suas múltiplas diferenças, desprendiam-se, de modo mais ou menos ruidoso, dos liames da poesia dos anos 1990, além de ligarem-se ao escopo da revista “Inimigo Rumor”, de Carlito Azevedo – a coleção até aqui dada a lume pelo “Círculo de Poemas” propõe uma imagem ainda mais aberta (e talvez mais problemática) da ideia de geração: a diversidade de poéticas e de estilos, marca distintiva do conjunto tornado visível antes, ganha agora uma inflexão mais abertamente política.

Uma nova constelação social

Não são apenas escolhas estéticas particulares – que marcariam a passagem de uma época a outra –, mas são mesmo outros os corpos, os sujeitos e as vozes que, diversos e inassimiláveis uns aos outros, inscrevem-se agora no retrato geracional (fragmentado) que emerge do “Círculo de Poemas”. São muito mais mulheres, são pessoas negras, ameríndias, não-binárias. É toda uma constelação social nova que se dá a ver aqui, e cuja presença desloca até a antiga centralidade do elemento nacional. Sem perder de vista o problema do valor estético (ainda que haja, como já dito, desníveis e escolhas menos felizes na coleção), e sem também impor ao projeto agendas militantes muito estreitas, que não permitam ter em vista outros horizontes, o “Círculo de Poemas” se move na direção de uma política do poético.


A curadoria da coleção aponta para o diverso, mas o que há nela de mais singular (e de mais fundamental) está na aposta que faz no anticonvencional e no desafiador. As publicações mais interessantes do “Círculo” vão, sem dúvida, por esse caminho: “A água é uma máquina do tempo”, de Aline Motta, “Tradução da estrada”, de Laura Wittner, “Ellis Island”, de Georges Perec, entre outros. No primeiro ano do projeto, os volumes de Jean-Luc Godard (“História(s) do cinema”) e Lu Menezes (“Labor de sondar [1977 – 2022]”) – talvez os dois lançamentos mais importantes no campo da poesia no período – apresentam textos de grande apreço pelo pensamento e de complexa elaboração formal. São livros difíceis, dos quais o leitor aproxima-se com cuidado. São sobretudo desafios lançados à percepção comum, trabalhos que multiplicam as perguntas e preferem a incerteza. Nas palavras do cineasta francês: “não vá mostrar/todos os lados das coisas/preserve, você,/uma margem/de indefinição”.
“Labor de sondar” apresenta uma poesia fortemente marcada pela curiosidade, e por isso mesmo sem um centro fixo ou sentidos estáveis. O olhar curioso que se projeta nesses poemas escarafuncha o mundo ao redor, pensando (e tocando, e jogando) incessantemente com ele – e com a linguagem. Tal atitude, que se situa em algum lugar entre o analítico e o infantil, assevera que cada pequeno objeto cotidiano, particularidade da língua ou informação científica pode ser infinitamente revirado até que venha a revelar o que carrega de beleza ou estranhamento, brilho ou surpresa.

A linguagem de Lu Menezes, plena de descobertas, reentrâncias e fundos falsos – marcada por constante apelo à visualidade e pela mistura de registros coloquiais simples e mecanismos retóricos bastante complexos, trabalhados, nos planos simultâneos da sintaxe, do ritmo e da imagética, com extrema perícia – traz em si, nos seus modos de organização interna, a interconectividade que tudo atravessa e alinha: rimas, paronomásias, jogos anagramáticos, metáforas que se desdobram umas das outras, neologismos compostos a partir da fusão de duas ou mais palavras. Para a poeta, palavras são como espelhos (imagens recorrentes nessa poesia, símiles da verve reflexionante que a constitui) nos quais o real se abre e multiplica. Repete-se, mas sempre em diferença e em desacordo consigo, “num eco divergente”. Entre as frestas do real, colhidas com habilidade, as palavras – “faíscam fônicas que fustigam” – procuram perscrutar “distâncias não mensuráveis” que separam, mas também podem aproximar, uma caixa de cereal matutino e a Via Láctea.

O poema-ensaio de Godard

“História(s) do cinema”, por sua vez, exibe ainda um outro traço notável da curadoria do Círculo de Poemas: o gosto pelo texto-limite, pelas propostas híbridas, pelo livro que, de um modo ou de outro, coloca em dúvida as definições correntes do que quer que venha a ser a poesia. Ou o próprio livro de poemas. Nesse ponto, talvez, a marca da Luna Parque Edições (cujos editores responsáveis são os poetas Marília Garcia e Leonardo Gandolfi) faz-se mais explícita. Afinal, a editora privilegiou, em seu catálogo enxuto, autores e experimentos conceituais inclassificáveis como os de Kenneth Goldsmith (“Trânsito”), Leslie Kaplan (“O inferno é verde”) e Vilma Arêas (“Um beijo por mês”), entre outros.


O livro de Godard é um longo e entrecortado poema-ensaio, cujos versos curtos e de respiração rápida oscilam, sem nunca se decidirem, entre o pensamento por imagens e a capacidade associativa (propriamente metafórica) da linguagem poética, e o tom analítico-discursivo que, via de regra, prepondera na prosa crítica e nos textos de extração filosófica. É ainda um poema cercado de imagens, atravessado de modo incontornável por elas. Uma voz que se projeta em meio aos quadros e fotogramas que o autor recolheu e ordenou no filme, na série de TV e no livro ilustrado de mesmo nome, “Histoire(s) du cinéma”. A edição do “Círculo”, seguindo a trilha aberta pela versão argentina do livro, traz apenas o texto, dando destaque à fatura poética do trabalho.


Alusivo, feito por montagens e elipses (em franca conexão com a linguagem e o imaginário cinematográfico), armado em torno de uma estrutura dual e dialética, o poema tem fôlego épico, repassando, de modo entrelaçado, as muitas histórias possíveis do cinema e da arte do século 20 com as inúmeras histórias dos crimes e violências desta mesma época. Nas palavras do autor: “histórias do cinema/ com alguns s/e alguns SS”. Por meio de associações inusitadas e notações de grande alcance crítico, além de um acúmulo vertiginoso de citações e referências à pintura, à literatura e ao mundo da política em geral, Godard discute o regime de imagens que atravessou toda a era das catástrofes, o breve século 20 (segundo a definição já clássica de Eric Hobsbawm), momento histórico que coincide, quase integralmente, com a invenção e desenvolvimento do cinematógrafo e da experiência cinematográfica.


Dado o seu caráter a um só tempo combinatório e reflexivo, lírico e narrativo, e também o seu furor enciclopédico e citacional, “História(s) do cinema” pode ser aproximado de poemas como “The Cantos”, de Ezra Pound (mesmo que o vetor ideológico seja completamente distinto) ou ainda das “Galáxias”, de Haroldo de Campos, trabalhos que foram, a seu modo, caudatários das aventuras formais da vanguarda, criações radicais construídas a partir dos monumentos e das ruínas do último século.


Parte do esforço curatorial do “Círculo de Poemas”, a prospecção de novos autores, segue, em grande medida, o caminho da experimentação e do hibridismo. Veja-se, a propósito, “A água é uma máquina do tempo” e “Pretovírgula”, ambos marcados pela interface com o cinema e as artes plásticas. São livros, de variadas maneiras, cinematográficos, marcados pelos modos de pensar e de construir imagens mais próximo do ponto de colisão de linguagens que é, desde as suas origens, o cinema.


A escrita visual de Aline Motta

No livro da artista visual Aline Motta (trata-se do seu primeiro trabalho propriamente, ou ‘exclusivamente’, literário) dá-se uma reunião bastante particular, sob o signo da poesia, de recursos e materiais, dentre os quais predominam uma escrita visual – talvez fosse mais exato dizer videográfica – (na qual palavra e imagem se articulam com ritmos precisos, a partir sobretudo de um trabalho inteligente da diagramação e da espacialização da escrita na página, que neste livro é também frame e tela), a manipulação contínua de material de arquivo (documentos cartoriais, fotografias, páginas de diário) e a construção meticulosa de um relato autobiográfico que se expande para a memória familiar e comunitária – com destaque para o ramo feminino e matrilinear, que encerra em si as contradições e sofrimentos da população negra no Brasil.


O livro dialoga também com a forma elástica e lábil do ensaio (o que remete novamente a Godard e ao impasse produtivo proposto por ele entre o filme, o ensaio e o poema) Por essa via, a do poema-ensaio, também se pode chegar a outros títulos da coleção: “Garotas em tempos suspensos”, de Tamara Kamenszain, “A Previsão do tempo para navios”, de Rob Packer, e ainda aos mais recentes “De uma a outra ilha”, de Ana Martins Marques, e “Ellis Island”, de Georges Perec, estes últimos trabalhos escritos a partir do fenômeno vital e trágico da emigração – e que têm ilhas (Lesbos, Sicília e a ilha Ellis, próxima de Nova Iorque) como personagens e paisagens fundamentais. O livro de Perec, aliás, conecta-se também com o pendor interartístico que caracteriza parte da curadoria da coleção, uma vez que o texto foi escrito para a realização do documentário de mesmo nome que o autor viria a fazer, para a TV francesa, em parceria com Robert Bober.


Esboçado esse resumo de alguns traços do trabalho curatorial levado a cabo pela coleção, haveria ainda muito mais a dizer sobre alguns livros das novas levas de poetas brasileiros que o “Círculo de Poemas” publicou até aqui. Ou sobre a constelação de autores já canônicos que figuram na coleção. Mas não há mais tempo, e os volumes pedem leituras individuais, mais detalhadas. Ficam aqui apenas alguns apontamentos finais.


Dentre os livros dos poetas mais jovens, alguns são de fato notáveis como “Dança para cavalos”, de Ana Estaregui, ou boas surpresas como “Holograma”, de Mariana Godoy, e “Abrir a boca da cobra”, de Sofia Mariutti. Merece destaque, certamente, “Uma volta pela lagoa”, de Juliana Krapp, veterana participante de antologias e revistas literárias, mas que até agora não tinha oferecido ao público nenhum livro. O volume de Krapp, de força e intensidades incomuns numa estreia, é um dos pontos altos da produção lírica mais recente do país, e sua presença na coleção dá peso e ressalta o cuidadoso trabalho de garimpo que os editores vêm fazendo na vasta (e muito desigual) produção poética brasileira do presente.


Este esforço de pesquisa e seleção (ações que definem, de certo modo, a palavra garimpo, significante fundamental do livro que inaugura o “Círculo”), também se deixa perceber nos bons títulos de autores de outras gerações que a coleção foi capaz, até agora, de recolher. Dentre eles, pedem atenção as plaquetes de Edimilson de Almeida Pereira e Marcos Siscar, respectivamente “Diquixi” e “A viva”, e, sobretudo, o livro “Sequências”, de Júlio Castañon Guimarães, pequena joia que reúne e sintetiza algumas das melhores questões que o “Círculo de Poemas” vendo sendo capaz de fazer o leitor formular. n

Gustavo Silveira Ribeiro é professor de literatura da UFMG e um dos editores da revista “Ouriço”

[Aline Motta]
“A água é
uma máquina do mundo”


Lugar de mãe. Lugar de filha. Mesmo quando eu tive de lhe dar um banho. Primeira comunhão.

Uma última respiração sua atravessou o cordão umbilical e saiu dos meus olhos em forma de lágrimas. Mesmo adulta eu ainda era capaz de habitar o seu corpo. Mover seus órgãos de lugar.

TUDO O QUE NÃO TIVE
SERÁ DELA.

[Marcos Siscar]

“A viva”

5.
Nas mãos do vivo tudo é simples. O mundo se acaba em simplicidade. As mãos deslocam uma coisa após a outra. Tudo está sob seus auspícios. Mas também ousam aproximações. Veja. Saem das luvas e enxugam os olhos. Na tarde de chuva fina faz noite precoce de quase inverno. Os olhos do vivo testemunham sentimentos. Em resposta suas mãos alegam tarefas práticas. Calos nas bases dos dedos duram muitos anos. Há cicatrizes que são para a vida toda. Como o dedo que entortou. Os gestos são simples. Mas as luvas e os olhos entraram em relação. A oca simulação do dentro e a cena do que é exposto. As mãos do vivo estão sempre à frente do sentido. Em silêncio cortam cogitam traçam destinos. A cada vez que sobem aos olhos. A cada vez que viram a página. Que viram a carta do jogo. Que abrem a tampa do pote. Numa trama com outras. Vista primeiramente pelo dorso a mão alheia tem pele manchada e metacarpos ásperos. Mas atenção. Enquanto se movem concebem finas e imprevisíveis relações. As mãos do vivo são a troca encarnada. Faísca feito escultura.

 

“De uma a outra ilha”, Ana Martins Marques

(...)
Seus poemas nos chegaram
em pedaços
quebrados como vasos de cerâmica
ou conchas espatifadas na praia
palavras como ilhas
cercadas de silêncio
por todos os lados.
(...)


[Jean-Luc Godard]

“História(s) do cinema”


Los poetas
entre os mortais são aqueles que
cantando com gravidade
sentem o rastro dos deuses que se foram
seguem esse rastro
e assim traçam para os mortais
seus irmãos
o caminho da reviravolta

mas quem
entre os mortais
seria capaz de reconhecer
tal rastro

é próprio dos rastros
não ficarem aparentes
e eles são sempre
legados como uma convocação
que mal se pressente

ser poeta
em tempos
de aflição
é portanto
enquanto canta
ficar atento
ao rastro
dos deuses que se foram

eis por que
em tempos de escuridão no mundo
o poeta fala o sagrado

[Lu Menezes]
No fundo e na superfície


No fundo do mar
um certo tipo de caranguejo
caprichadamente se dedica
a arranjar em frente à toca
pregos, botões, tampas de refrigerantes
cacos e cositas más... assim cultivando
seu jardinzinho – exposto
à cobiça de um ou outro
também competitivo vizinho.

No fundo da gavetinha
do teu filhote aos 5, quase
a mesma coleçãozinha.
– Nunca surrupiada
talvez por ser ele
único filho e proprietário.
Embora sua física pessoa, sim.

Larápia – a própria mãe.
Quando pós-banho enxugando
o maroto roupão removeu
mínima casquinha seca
de uma feridinha. E seu dono,
revoltado: – Você roubou
meu machucado. Meu
machucado!

À mesma ré ocorre a lembrança
de duas irmãs “varrendo” a casa (escondidas)
quando uma briga eclodiu: – Você roubou
meu lixo! Meu lixo!

Até onde alcança “infância”?
“Coleção”, o que pode ser?
Até onde vai “valor”.

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