Entre tantas movimentações e manifestações ocorridas na poesia e nas artes em geral, na agitada e criativa segunda metade do século 20, no Brasil, a “Semana Nacional de Poesia de Vanguarda” – realizada em agosto de 1963, em Belo Horizonte, com o apoio da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – foi uma das mais marcantes e expressivas. O evento reuniu algumas das melhores cabeças pensantes do país naquele período, incluindo poetas, críticos e tradutores: Augusto e Haroldo de Campos, Benedito Nunes, Affonso Ávila (idealizador e organizador da “Semana”), Décio Pignatari, Pedro Xisto, Luiz Costa Lima, Roberto Pontual, Laís Corrêa de Araújo, Frederico Morais etc. A estes se juntaram os então poetas jovens de Minas dos grupos Vereda (do qual faziam parte, entre outros, Henry Corrêa de Araújo e Libério Neves) e Ptyx (cujo membro de maior relevância era Márcio Sampaio).


Ainda vivendo sob o clima de euforia desenvolvimentista, advindo do interregno democrático representado pelo governo de Juscelino Kubitschek, mas pressentindo já as “sombras” autoritárias que viriam se abater sobre o país com o golpe militar de 1964, os intelectuais se reuniram na “Semana” de BH com uma perspectiva utópica: formar uma frente que reunisse diferentes grupos e tendências compromissados com a “criação de uma linguagem nova e de autenticidade brasileira para a nossa poesia”, mas sem abdicar da “preocupação comum de atribuir-lhe função participante no contexto da realidade nacional”.


Entre as atividades programadas para o evento (conferências, debates, leituras etc.), a principal era uma mostra de poemas-cartazes, no saguão do prédio da Reitoria da UFMG, primeira edificação erguida no então incipiente campus da universidade em BH, na Região da Pampulha. Ali foram dispostos, em diversos painéis, os poemas dos participantes – uma produção que se propunha como vanguarda, a um só tempo, renovadora e provocante, tanto na forma (recursos visuais, uso racional e programado do espaço em branco, síntese verbal, sonoridade e jogos de palavras etc.), quanto no conteúdo (recusa ao lirismo fácil e convencional, crítica social e política, posicionamento diante da realidade nacional colaborando, em termos poéticos, com a sua transformação etc.). Enfim, a “Semana” buscava sintonizar Minas com a produção contemporânea mais avançada e cosmopolita, superando limitações provincianas e acertando nosso “relógio estético”.


As repercussões foram intensas e, de certa forma, a “Semana” se tornou um marco e um parâmetro no ambiente local; nacionalmente, abriu um diálogo criativo e produtivo do grupo mineiro com os do Rio de Janeiro e, principalmente, de São Paulo – capitais que já conviviam com o impacto e as transformações do concretismo e do neoconcretismo. O comunicado com as “conclusões” da reunião realizada em BH, publicado na imprensa (e, mais tarde, em livro de Affonso Ávila), falava em consciência de forma (“são imprescindíveis o empenho e a consciência da criação de novas formas e processos para o desenvolvimento e avanço da poesia brasileira”), em comunicação e participação (“a luta pelos meios de divulgação, em consequência, é paralela, em sentido e força, à luta pela clarificação e eficácia da linguagem”), em função prática (“criação de novos métodos e meios de aplicação do texto – falado, musicado, escrito ou visualizado – além da intensificação do emprego dos já existentes”) e, finalmente, em opção (“a contribuição do poeta para a transformação da realidade nacional tem de basear-se no modo de ser específico da poesia como ato criador”). Datado de 19 de agosto de 1963, o documento foi assinado por todos os participantes.


Balanço 1993

Trinta anos após a realização da “Semana”, foi realizado um evento comemorativo, também em Belo Horizonte, que possibilitou uma espécie de “balanço” dos caminhos abertos e percorridos pelos participantes, a partir de 63. Para tanto, foram realizadas uma série de palestras/debates e uma nova exposição, no Centro Cultural da UFMG, com apoio da Secretaria Municipal de Cultura, reunindo material da época: poemas-cartazes originais, publicações, fotografias e matérias saídas na imprensa. Houve também uma mostra de vídeos, o lançamento do livro “Evolução da Poesia Brasileira” de Mário Faustino (com organização de Benedito Nunes) e a realização do espetáculo multimídia “Ouver”, com direção de Walter Silveira. Todo o evento foi coordenado por Eleonora Santa Rosa.


Para o ciclo de reflexões foi reunido novamente o chamado “núcleo duro” da “Semana” de 63, formado por Affonso Ávila (que, na ocasião, completava 40 anos de atividade poética), Haroldo de Campos, Benedito Nunes, Laís Corrêa de Araújo, Décio Pignatari, Augusto de Campos e Luiz Costa Lima. Todos colocaram em perspectiva histórica suas obras e trabalhos, nascidos sob a égide da vanguarda, realizando um importante “balanço” que levou em conta as transformações da poesia brasileira e o novo momento que ela atravessava (identificado, no período, por Haroldo de Campos, como “pós-utópico”). A reunião dos textos apresentados foi publicada num livro-catálogo intitulado “30 Anos/Semana Nacional de Poesia de Vanguarda – 1963/93”, editado pela SMC da Prefeitura de BH.


Em 2013, nos 50 anos da “Semana”, uma exposição comemorativa com poemas-cartazes foi realizada no saguão da Reitoria da UFMG (com coordenação de Wander Melo Miranda e Myriam Ávila), a partir do material da mostra de 93 – que havia sido doado ao Acervo de Escritores Mineiros da Universidade, onde se encontra preservado.


Um elo possível

Um dado marcante da “Semana” de 63 foi a presença inusitada e inesperada de Paulo Leminski. O então jovem e ainda desconhecido poeta paranaense, sabendo do evento que seria realizado em Minas, deslocara-se de seu estado, sem convite oficial para participar e, segundo o “folclore” da “Semana”, na base da carona. A aparição de Leminski seria evocada mais tarde por Haroldo de Campos (foi em BH que o poeta travou contato pela primeira vez com os poetas concretos que se tornariam desde então seus gurus): “o Paulo Leminski nos apareceu, dezoito ou dezenove anos, Rimbaud curitibano com físico de judoca, escandindo versos homéricos...”. Da “Semana” para as páginas da revista “Invenção”, porta-voz dos concretos paulistas, foi um pulo. Em Curitiba, Leminski também organizou um grupo de poesia experimental e criou uma página de vanguarda num jornal local. O resto da história todos sabem: Leminski se tornou um dos mais criativos e conhecidos poetas surgidos no rescaldo das vanguardas dos anos 50 e 60 no Brasil. Após o filtro inicial do concretismo, Leminski partiria para a criação de uma linguagem própria, que se caracterizaria por uma saída pessoal diante dos problemas teóricos levantados pelo movimento e da própria prática desenvolvida por ele em textos diversos, de caráter experimental.


Curiosamente, a presença poética de Leminski só se tornará mais intensa a partir de meados dos anos 70, atuando conjuntamente com uma nova geração, ainda na faixa dos vinte anos. Por exemplo, na revista “Muda”, editada em São Paulo em 1977, onde aparece com destaque em foto e com vários poemas. No período, ele influenciou fortemente os mais jovens com sua dicção personalíssima, retomando o verso e a rima de forma anticonvencional, com uma liberdade de linguagem até então inédita. Leminski produziu uma “descompressão” no rigor da linguagem herdada das vanguardas; vários seguiriam a trilha aberta por ele.


Os então jovens poetas, que participaram de “Muda” e de muitas outras publicações naquele período (no Rio e em São Paulo; na Bahia e em Minas...), mostraram abertura, falta de preconceito e disposição para dialogar com a produção das vanguardas dos anos 50 e 60 – entre elas, as que estiveram representadas na “Semana” de BH. Leminski funcionou, individualmente, como um poeta-elo entre duas gerações: a de Affonso Ávila e dos irmãos Campos e a dos que estrearam naqueles anos 70, editando revistas e publicando seus primeiros textos, esboçando ainda sua trajetória poética.
As experimentações e conquistas de linguagem das vanguardas – sintetizadas, em parte, na histórica “Semana” de BH, que em 2023 completa 60 anos – já estão devidamente incorporadas à poesia contemporânea. A impressão é que os jovens de hoje assimilam, com naturalidade, cada vez mais essas conquistas. E continuam experimentando. Na essência, como assinalou Wallace Stevens, “toda poesia é experimental”. 

Carlos Ávila é poeta e jornalista. Autor de “Bissexto sentido”, “Área de risco” e “Poesia pensada”, entre outros. Foi editor do Suplemento Literário de Minas Gerais.

 

Affonso Ávila com Décio Pignatari; Paulo Leminski, Haroldo de Campos e Pedro Xisto; Haroldo de Campos e Affonso Ávila
na Pampulha: encontro de algumas das melhores cabeças pensantes do país nos anos 1960

compartilhe