A escritora japonesa Aoko Matsuda -  (crédito: Gutenberg/Divulgação)

A escritora japonesa Aoko Matsuda

crédito: Gutenberg/Divulgação

HINA-CHAN

Tudo começou quando fui pescar pela primeira vez na vida. Uma amiga dos tempos de faculdade me convidou, disse que era uma boa oportunidade, que eu devia tentar coisas novas e não sei mais o quê, e acabei indo com ela pescar no rio Tama. Ela me emprestou todo o equipamento. Passei um tempo absurdamente longo encarando a superfície do rio e segurando a vara azul-marinho que ela me entregou. Estava me perguntando se tinha passado tempo o bastante para eu dizer que queria ir para casa, quando senti um puxão na linha. Girei o molinete – então era essa a famosa emoção da pescaria? – e vi algo branco enganchado no anzol.

Era Hina-chan. Quer dizer, o crânio dela.

Minha amiga imediatamente informou a polícia, que apareceu em instantes, recolheu os ossos, e vimos o local da nossa pescaria se transformar em uma cena do crime cercada de agentes. Pelo que li depois na internet, a única conclusão a que eles chegaram foi que os ossos de Hina-chan eram muito antigos. Procuraram muito, mas não encontraram o resto do seu esqueleto. Deu para ver que não sabiam o que fazer com o crânio dela, pois não chegava a ser nenhuma relíquia cultural e também não havia evidências de que tivesse sido uma morte criminosa. No fim, largaram no depósito de algum órgão público que não entendi direito o que faz. Deve estar jogado num canto.

Mas o crânio no depósito não é a parte importante da história.

Depois que eu pesquei o osso e nós fomos interrogadas pela polícia, eu e minha amiga nos despedimos, meio rindo do rumo absurdo que aquela pescaria tomara, e voltei para casa. Ela estava chocada, ficou repetindo que em vinte anos pescando nunca tinha visto uma coisa daquelas. Assim que cheguei em casa, recebi uma mensagem dessa amiga falando que na semana seguinte iria pescar de novo, em outro lugar, e perguntando se eu queria ir também. Declarei imediatamente que não tinha interesse. Fisgar um osso humano na primeira pescaria da vida era bem mais do que sorte de principiante. Exausta com todo esse evento, caí na cama e dormi por umas duas ou três horas, sem nem trocar de roupa. Acordei com alguém tocando de leve meu ombro.

– Olá... – arriscou uma vozinha.

Abri os olhos e me deparei com uma mulher de quimono, coberta de lama, me olhando sem jeito. Soltei um berro e a mulher enlameada abriu as mãos diante do meu rosto, em sinal de que não havia nada a temer.


– Vim agradecê-la pela gentileza que me fez hoje.

– Hã?

– Foi graças à sua grande generosidade que eu finalmente pude voltar a ver a luz do sol, depois de longos anos submersa nas águas do rio Tama. Eu não poderia deixar de expressar minha gratidão.

Essa mulher veio me agradecer por pescar seu crânio? Ou seja, essa criatura enlameada na minha frente é um fantasma? Contive com muito esforço o impulso de berrar novamente. Em vez disso, balancei a mão em negativa e respondi:

– Ah, não esquenta com isso. Foi só uma coincidência.

– Por obséquio, eu lhe peço que ouça o que tenho a dizer. Foi há muito tempo, no período Edo...

– Edo?!

E assim a mulher saiu narrando a sua história, do nada.Bem daquele jeito que as pessoas costumam desembestar de repente em filmes de época ou novelas antigas.

– Sim, minha senhora, em Edo. Depois que uma epidemia levou ambos os meus pais, outros parentes tentaram me sujeitar a uma proposta de casamento que não me agradava. Por recusar a proposta, fui covardemente atacada por um lacaio desse pretendente e lançada, sem vida, para dentro do rio Tama. Desde então permaneci imersa, à mercê das correntes, sem que ninguém me encontrasse. Com o passar dos anos, o restante dos meus ossos foi sendo carregado para longe.

– Gente, como assim, que horror! Isso é muito absurdo! Fiquei morta de pena daquela fantasma na minha frente. Que homem escroto! Quer dizer, mais do que isso, era um criminoso! E esses parentes também, onde já se viu tentar forçar uma pessoa a casar com alguém que você deci- diu? Casamento é coisa séria, para a vida toda. Só inventam isso porque sabem que não são eles que vão pagar o pato.

 

 

SOBRE A AUTORA

A escritora japonesa Aoko Matsuda, de 44 anos, vem chamando atenção dentro e fora do seu país por seu texto criativo, bem humorado e crítico, a partir de uma perspectiva feminista. "Obachantachi no iru tokoro", traduzido para o português por Rita Kohl como "Onde vivem as monstras" (já que o original faz trocadilho com o clássico "Onde vivem os monstros", de Maurice Sendak), marca a estreia de Aoko em língua portuguesa. O livro recebeu o prêmio World Fantasy Award em 2021. Seu primeiro livro, "Sutakkingu kano" ("Empilhável", em tradução livre), e ainda sem versão em português, foi lan;cado em 2013 e indicado aos prêmios Yukio Mishima e Noma Literary New Face.


ONDE VIVEM AS MONSTRAS
Aoko Matsuda
Tradução de Rita Kohl
Editora Gutenberg
224 páginas
R$ 64,90