Prática usada para obtenção de informações ou realização de ações de forma sigilosa, a espionagem desperta grande interesse em leitores e espectadores de tramas audiovisuais. Sejam casos reais ou ficcionais, histórias se tornam vasto material para diferentes teorias, algumas até conspiratórias.
Do mais famoso, o britânico James Bond, criado pelo jornalista e escritor Ian Fleming (1908-1964) em 1953, passando pelo francês Arsène Lupin , de Maurice Leblanc (1864-1941) em 1907, até “Os últimos soldados da Guerra Fria”, de Fernando Morais, que retrata a história real de espiões cubanos nos Estados Unidos na década de 1990, obras geradas atraem interessados em se aprofundar sobre o tema ou simplesmente se entreter com uma boa história.
Instigado a explorar o tema no Brasil, o escritor Paulo Valente, filho de Clarice Lispector, resgatou a misteriosa morte do embaixador soviético Ilya Tchernyschov (1912-1962) e de seu assistente Valery Iaschov em outubro de 1962, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro.
"É tudo verdade, seja nos fundamentos históricos ou na minha imaginação", esclarece Valente. Ao longo do livro, que conta com prefácio do ex-chanceler Rubens Ricupero, os fatos e a imaginação do autor se fundem, sem delimitação do que é ou não “realidade”. “A originalidade da trama não se esgota no gênero escolhido. Estende-se a outro domínio, o da ficção-realidade ou da reportagem-ficção, ao escolher uma história inserida numa crise geoestratégica real, a dos mísseis de Cuba”, destaca Ricupero.
Conhecido por ser exímio nadador, Tchernyschov foi declarado morto por afogamento, algo negado pela autópsia do Instituto Médico Legal (IML), dias depois, segundo notícia veiculada no Jornal do Brasil, que apontou “uma síncope cardíaca” como causadora do infortúnio.
Iaschov, um dos dois assistentes, teria entrado no mar para salvar o representante da União Soviética. Seu corpo demorou dias para ser encontrado, tendo sido supostamente levado de volta à terra pelo mar. Contudo, os dias em que o Serviço de Salvamento passou em busca do assistente desaparecido na água e o histórico de atleta do embaixador suscitaram a possibilidade de que o caso não tenha se tratado de um mero acidente.
Paulo Valente imaginou o cenário da vida do assistente do embaixador. Filho de um casal russo que emigrou para os Estados Unidos, tratado como um herói de guerra após a ofensiva americana durante a Segunda Guerra Mundial na Europa, Iaschov seria o nome perfeito para espionar importantes nomes do primeiro escalão do governo soviético no decorrer daquele período.
As mortes ocorreram em 21 de outubro, às vésperas do pronunciamento do presidente dos Estados Unidos John F. Kennedy (1917-1963), que exigiu a retirada de mísseis soviéticos que haviam sido instalados em Cuba. A presença do armamento no local foi relatada ao presidente americano por espiões.
A medida tomada pelo governo do primeiro-ministro Nikita Khrushchev (1894-1971) foi uma resposta dos soviéticos à instalação de armas nucleares pelo então presidente Dwight Eisenhower (1890-1969) na Turquia, em 1958 e 1959, visando ameaçar Moscou.
Com a tensão e o risco de uma guerra nuclear que poderia ameaçar o mundo, os países acertaram um acordo no qual as duas potências iriam retirar suas armas e que a ilha caribenha não seria invadida pelos americanos.
De 7 a 8 de outubro daquele ano, quase duas semanas antes da morte de Tchernyschov, o embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon (1913-2009), se reuniu com o presidente Kennedy na Casa Branca, em Washington, para discutir uma intervenção militar com intuito de depor o presidente João Goulart, mais conhecido como Jango.
“Quando o Kennedy pergunta ‘que que eu faço em relação ao Brasil?’, o Lincoln Gordon diz ‘talvez seja o caso de uma intervenção militar’”, contextualizou Paulo para justificar a teoria apresentada em “A morte do embaixador russo”.
Os historiadores apontam que não havia sinal de que estivesse sendo preparado um golpe comunista por João Goulart (1919-1976). Contudo, as propostas de reformas estruturais, chamadas de reformas de base, que visavam atingir setores como educação, agricultura, tributário e urbanístico, fizeram com que os Estados Unidos estimulassem o golpe cívico-militar de 1964, o que instaurou uma ditadura que durou até 1985.
A prática americana de incentivar a destituição de governos eleitos que estivessem ideologicamente alinhados com o comunismo soviético ou chinês fazia parte da política externa dos EUA para a América Latina.
A intervenção dos Estados Unidos afetou a política de países, alguns mais de uma vez, como Honduras, Nicarágua, Haiti, Panamá, Colômbia, Guatemala, República Dominicana, Cuba, Bolívia, Uruguai, Argentina, Chile e El Salvador, além do Brasil, apenas na América Latina, em cerca de um século.
O velório do embaixador soviético no Brasil contou com a presença de importantes figuras brasileiras, como o presidente João Goulart e outros políticos, e comunistas do país, vide o militar e político Luís Carlos Prestes (1898-1990), na época representante do Centro Cultural URSS de São Paulo, e do escritor Jorge Amado (1912-2001). Lincoln Gordon e a embaixada dos Estados Unidos enviaram uma coroa de flores e homenagens.
Ilya Tchernyschov nasceu em 2 de agosto de 1912, na República do Quirguistão, foi embaixador da União Soviética na Suécia, vice-presidente do Comitê Estatal de Rádio e TV e vice-secretário da ONU de 1953 a 1957, segundo o Jornal do Brasil. Ele deixou a esposa, que, no momento da morte – ou assassinato –, estava em Moscou, uma filha que tinha 23 anos na época, e um neto. Pouco se sabe sobre a vida do assessor Valery Iaschov.
Trecho do livro
“Em junho de 1940, Valery L. Larskov apresentou-se, com 18 anos incompletos, ao posto de recrutamento militar de Nova York (...). A triagem foi relativamente rápida e seu bom desempenho nos testes o levou a ser admitido no Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos.
Com a declaração de guerra dos EUA contra os alemães, Larskov embarcou em 1942 para a Europa, tendo composto o esquadrão inicial que invadiu a França pela praia de Omaha, na Normandia, em junho de 1944. Em junho de 1945, (...) , retorna à Pensilvânia, como herói de guerra, à procura de nova ocupação, como milhares de veteranos.
As autoridades de inteligência dos EUA já estavam à procura de pessoal que falasse russo nativo para missões na União Soviética.”
“A morte do embaixador russo: Um relato de espionagem no Brasil”
De Paulo Valente
lEditora Record
l144 páginas
R$ 55,90