O escritor Edimilson de Almeida Pereira -  (crédito:  Flip/Divulgação. O escritor Edimilson de Almeida Pereira.)

O escritor Edimilson de Almeida Pereira

crédito: Flip/Divulgação. O escritor Edimilson de Almeida Pereira.

Na África Antiga (desde os atuais países do sul do continente até os da chamada África Subsaariana), os griots eram os mensageiros oficiais, os guardiões de tradições milenares. Com agogôs e akotings, instrumentos semelhantes ao banjo, dançavam e cantavam versos sobre a história de seus ancestrais, passando o conhecimento aos mais jovens. Na Europa medieval, havia algo parecido. Mais comuns no sul da França e no norte da Itália, os troubadours viajavam de aldeia em aldeia entoando canções folclóricas ou versos sobre cavalheirismo e amor cortês. Já na Austrália, quem fazia isso eram os songmans.
E, no Brasil? Quem cumpre - ou já cumpriu - essa função?


Os devotos do congado, responde o escritor e professor do curso de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Edimilson de Almeida Pereira. Vencedor do prêmio Sílvio Romero, ele foi finalista do Jabuti em 2018 na categoria poesia com “QVASI: segundo caderno”. “É possível alinhar como poités (sujeito criador), entre outros, o devoto do congado, o griot africano, o troubadour medieval e o songman australiano. Porém, vale estar atento ao fato de que o caráter universal do criador se explicita a partir de experiências locais, que revelam trajetórias histórico-culturais específicas”, escreve Edimilson no livro “A saliva da fala - Notas sobre a poética banto-católica no Brasil”, que ganhou nova edição pela Fósforo.


Seguindo na mesma toada de “Entre Orfe(x)u e Exunouveau” (2017), livro no qual Edimilson propõe neologismos no intuito de entender as diversas variantes da poesia e da literatura nacional; “A saliva da fala…” se debruça justamente nas variantes da poesia nacional, mais especificamente nos cantopoemas produzidos por grupos de congado e benzeção de diferentes comunidades de Minas Gerais.


Trata-se de textos que têm na oralidade seu suporte inicial. São discursos cantados que os devotos elaboraram para períodos específicos de celebrações, mas que também são carregados de experiências e vivências cotidianas.


Contudo, apesar da riqueza de estilos e conteúdos, toda essa produção não foi considerada como fonte de diálogo e inspiração para a formação do repertório poético brasileiro, o que o Edimilson pretende retificar em “A saliva da fala…”.


“Essa é a minha base de trabalho desde o final dos anos 1980”, conta ele ao Pensar. “Nessa época, eu e mais um grupo de pesquisadores realizamos uma série de investigações de campo no interior de Minas. Nossa ideia era discutir como que culturas rurais em áreas isoladas conseguiam manter uma estrutura própria, uma organização própria de vida que fazia sentido para aquelas comunidades isoladas, ao mesmo tempo em que ficavam à margem daquilo que a gente chama de cultura dominante”, acrescenta.


Naturalmente, a proposta de Edimilson há cerca de 35 anos não era estudar a poética desenvolvida nessas comunidades, e sim o comportamento e a organização de seus integrantes. Mas ele acabou intrigado com os cantopoemas.


“Eles nunca fizeram parte de nenhum interesse da crítica literária brasileira, não correspondiam àquilo que a gente conhece como literatura, porque o modelo dominante de literatura é majoritariamente escrito”, ressalta o escritor.


SISTEMA DE RELEVÂNCIA

Há uma explicação para isso, de acordo com Edimilson. A predominância de um grupo econômico, político ou ideológico no Brasil colonial criou uma espécie de sistema de relevância atribuído à literatura escrita. O que ficou em evidência, portanto, foi a literatura na qual se reconhece um sujeito autoral que circula no meio letrado. Algo que se distancia muito dos cantopoemas, onde, na maioria das vezes, não há uma autoria reconhecida.


Com efeito, a visão míope desse grupo dominante deixou de fora do cânone literário, além dos cantopoemas, todo o manancial das literaturas indígenas e do universo rural. “Durante muito tempo, tudo isso foi tratado como uma produção de linguagem folclórica. Tanto é que, se você pegar os manuais de folclore mais antigos, está lá sobre o folclore oral brasileiro: ‘lendas indígenas’ e ‘lendas africanas’. Então, houve essa ideia de que isso era um modo de produzir textualidade menos relevante e que não merecia tanta atenção, como a gente faz com os textos literários”, afirma.


Edimilson é um escritor multifacetado e profícuo. Além de “A saliva da fala…”, ele também acaba de lançar “Mapa e travessia” (Mazza Edições), que reúne dois estudos sobre as obras poéticas de Eustáquio Gorgone de Oliveira (1949-2010); e “Olho vivo, olho mágico” (FTD), livro-objeto infantil no formato de sanfona que traz os poemas “A mão, o livro, o papel e o vento” e “A senhora, o gato, o chapéu e o pássaro”.


“‘Mapa e travessia’ abre uma provável série de estudos sobre poesia contemporânea. Os ensaios pretendem desenvolver análises teóricas suscitadas, muitas vezes, pelo próprio texto literário. A intenção desses estudos é sustentar as condições necessárias para que tenhamos uma discussão aberta sobre os fenômenos específicos da literatura, bem como dos seus pontos de fricção com outras esferas do conhecimento”, resume ele.


“Já ‘Olho vivo, olho mágico’ é a sequência de outros livros que eu venho trabalhando há um bom tempo. A gente sabe o quanto o discurso poético é fundamental para a articulação do discurso da criança. Ela usa muitos recursos poéticos na fala, acessa muito facilmente a construção da linguagem poética, que é muito sofisticada. Então, eu venho tentando trabalhar, poeticamente e de maneira sofisticada, os textos voltados para esse público, no grau de exigência desse leitor sofisticado, que é a criança”, conclui.

Cantopoemas que estão no livro

Chorano só
Ei, chorano só
Ei, eu vim cá dispidi chorano, ai
Eu agora vô m’imbora
Ei, ocês fica aí com Deus, ai
Ai, eu vô imbora com Senhora
Ei, adeus, adeus, adeus, ai
Ei, meus irmão
Adeus, adeus, ai
Ei, nego véio já vai imbora
E se a morte não me buscá
Para o ano torno a voltá
Oi, adeus, adeus, adeus, ai
Ei, marinhero vai imbora
Ei, seu navio já tá no porto, ai
Ai, no jeito de navegá
Oi, adeus, adeus, adeus, ai
Ai, nego véio já vai imbora
Ei, ocê fica aí com Deus, ai
Oi, eu vô com Nossa Senhora

Ê, peguei com Nossa Senhora
E também com o bom Jesus
Que andô de passo a passo
Carregano a sua cruz
Ê, fui no mato buscá lenha
Encontrei com um home grande
E tava em pé, em pé
Mas eu fui no mato tirá lenha
E encontrei foi o cipó
Encontrei um home em pé
Ele tinha um oio só
Ô ô ô que tanto medo, auê
Oi, eu vinha subino o morro
Minha perna já doía
Se não fosse Mãe Maria
Caititu já me comia
Oi, divera eu fui no mato tirá cipó
Ei, Mãe Maria
Acorde esse povo
(Cantopoema da comunidade de Justinópolis, em Belo Horizonte)

Eu vim de muito longe
Senta um mocadim
Ei rum rum rum
Menino novo num dabe rezá
Chega na igreja
Num sabe ajoelhá
E, menino novo,
Vamo já rezá
Vamo já rezá
Rum rum rum
Rê rê rê
Ei, para o ano
Podê confessá, ei povo
Podê confessá
(Cantopoemas da comunidade de Arturos, em Contagem)

SOBRE EDIMILSON

Natural de Juiz de Fora, Zona da Mata mineira, Edmilson de Almeida Pereira estreou na poesia aos 22 anos, com o livro “Dormundo” (1985). É poeta, ensaísta e professor de literatura portuguesa e literaturas africanas de língua portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). De sua produção poética, destacam-se “Zeosório blues” (2002), “Lugares ares” (2003), “Casa da palavra” (2003), “Relva” (2015), “Guelras” (2016), “Qvasi” (2017) e “Poesia +“ (2019). Entre os ensaios, os destaques são “Os tambores estão frios: herança cultural e sincretismo religioso no ritual de Candombe (2005, Prêmio Vivaldi Moreira da Academia Mineira de Letras); “Entre Orfe(x)u e Exunouveau: análise de uma epistemologia de base afrodiaspórica na Literatura Brasileira” (2017), “A saliva da fala: notas sobre a poética banto-católica no Brasil” (2017, Prêmio Sílvio Romero de Folclore e Cultura Popular/ FUNARTE). Em 2018, foi finalista do Jabuti na categoria poesia com “Qvasi”. E, em 2021, recebeu o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria Melhor Romance por “Front” (2020).

“A SALIVA DA FALA - NOTAS SOBRE A POÉTICA BANTO-CATÓLICA NO BRASIL”

De Edimilson de Almeida Pereira
Fósforo Editora
336 páginas
R$ 89,90

Outros lançamentos de Edimilson Pereira

“OLHO VIVO, OLHO MÁGICO”

Editora FTD
20 páginas
R$ 64
Livro-objeto em formato de sanfona que traz, de um lado, o poema “A mão, o livro, o papel e o vento” e, do outro lado, o poema “A senhora, o gato, o chapéu e o pássaro”. Enquanto o primeiro texto aborda os mistérios da escrita, o segundo tem como tema as escolhas de uma senhora que vive seu luto. As ilustrações são assinadas pelo artista paulista Rodrigo Visca


"MAPA E TRAVESSIA"

Mazza Edições
168 páginas
R$ 54
Livro reúne dois estudos sobre as obras poéticas de Eustáquio Gorgone de Oliveira (1949 – 2010) e Prisca Agustoni (Lugano, 1975). Os dois poetas, de acordo com Edimilson, enxergam a linguagem como elemento radical para a compreensão das aventuras e desventuras humanas, que se traduzem nas tensões entre o ato de escrever e as mudanças sociais


"ENTRE ORFE(X)U E EXUNOUVEAU"

Editora Fósforo
248 páginas
R$ 79,90
“Entre Orfe(x)u e Exunouveau” inaugura projeto do autor de estudar como que culturas rurais em áreas isoladas conseguem manter estrutura própria e organização próprias ao mesmo tempo em que ficavam à margem da chamada cultura dominante. Para isso, Edimilson desenvolveu dois neologismos ao longo da obra