O escritor mineiro Jacques Fux.
       -  (crédito:  Jair Amaral/EM/D.A Press. Brasil. Belo Horizonte - MG.)

O escritor mineiro Jacques Fux.

crédito: Jair Amaral/EM/D.A Press. Brasil. Belo Horizonte - MG.

Ana Cecília Carvalho
Especial para o EM

A literatura e a psicanálise não são incompatíveis. Pelo contrário, dialogam e se nutrem mutuamente, numa espécie de “fertilização cruzada”, como Freud costumava dizer. Mas se é correto dizer que não existe incompatibilidade entre a origem do material que alimenta a escrita ficcional e o material com que o analista trabalha em sua prática, isto não significa que devemos ignorar as suas especificidades como dois recursos distintos para lidar com a realidade interna e externa. Um deles se refere aos sintomas emocionais, que são produções defensivas indicadoras de sofrimento psíquico que, em geral, constitui a razão pela qual alguém busca ajuda terapêutica, uma vez que falharam os modos com os quais o sujeito lidava com esse sofrimento. O outro recurso (o da criação artística e literária) pertence ao campo do que chamamos de sublimação, processo por meio do qual, entre outros aspectos, acontece a transformação do material subjetivo em algo socialmente compartilhável. Embora literatura e psicanálise bebam das mesmas fontes, os métodos e também os objetivos de cada uma são diferentes.


Em relação à escrita criativa Freud dizia, por exemplo, que o escritor bebe das mesmas fontes que interessam ao psicanalista. Segundo pensava, o escritor e o psicanalista lidam com a mesma matéria. Mas cada um chega por caminhos diferentes aos mesmos achados. Se Freud estava certo ao dizer que, como psicanalistas, “ao que não podemos chegar voando, temos de chegar manquejando”, embora “não seja pecado mancar”, é porque o método psicanalítico de investigação, embora limitado, tem lá a sua efetividade na elucidação daquilo de se alimenta a escrita literária.

Resguardadas as especificidades do texto literário e do material com que o analista trabalha em sua clínica, quando abordamos psicanaliticamente um texto literário trabalhamos para comparar, uns com os outros, os elementos que se anunciam na escrita, tal como fazemos ao longo da fala do paciente nas sessões de análise. Prestamos atenção não apenas o que é dito, mas também no que se cala. Na “leitura flutuante” do analista diante do texto literário, tudo importa: as escolhas temáticas, as repetições, as lacunas, as inflexões, os dados biográficos e a maneira como são transformados na escrita. Diante de uma obra literária, o psicanalista compara o escritor com ele mesmo. Ao “deitar” o autor e suas personagens no divã, o analista não o faz para extrair dali um diagnóstico, mesmo que isso pudesse ser feito. Se hoje não nos precipitamos a diagnosticar o escritor, é porque há aspectos mais interessantes sobre o texto literário que o instrumental investigativo da psicanálise poderia destacar. Na medida em que esse método permite ver os graus de aproximação e distanciamento entre a experiência vivida pelo autor e a sua transformação em material literário, ele revela, nas recorrências e nas inflexões temáticas, por exemplo, as pegadas que nos permitiriam formular algo como a “posição subjetiva” do autor, para não dizer a sua impressão digital, a sua voz autoral, enfim, o seu estilo.


Com isso colocado, em relação à literatura do mineiro Jacques Fux, sobre a qual me ocupo nesta resenha, ao focalizar o romance “Nunca vou te perdoar por você ter me obrigado a te esquecer”, um aspecto se destaca: a constante invenção de um si mesmo (que não equivale à sua pessoa física), na figura do narrador, numa situação que podemos descrever, correndo o risco de uma espécie de redundância, como ficção autobiográfica ou auto-ficção.


Para seguir o método comparativo que citei no início, depois de ler toda a produção literária do nosso autor, enumero, a seguir, a ordem em que seus livros foram publicados: 1) “Literatura e matemática” (tese de doutorado agraciada com o Prêmio Capes-2011); 2) “Antiterapias” (Prêmio São Paulo-2012); 3) “Brochadas”; 4) “Meshugá”; 5) “Nobel”; 6) “A psicanálise nos jogos e traumas de uma criança de guerra”; 7) “O enigma do infinito”, 8) “Mary Anning e o pum dos dinossauros”; 9) “Herança”; 10) “As coisas de que não me lembro, sou” (Prêmio da FNLJ-2023); 11) “Meu pai e o fim dos judeus da Bessarábia” (em parceria com o pai, Samuel Fux), 12) “As fábulas do fabuloso fabulista Joãozito”; e, finalmente, 13) “Nunca vou te perdoar por você ter me obrigado a te esquecer” (finalista do Jabuti-2023).


Na “atenção livremente flutuante” da minha leitura dos livros de Fux, fui me detendo na recorrência dos temas (por exemplo, a forte presença da ascendência judaica que ele e eu compartilhamos), nas vozes que assumem muitas vezes uma posição auto-referencial, na intertextualidade assumida (porque Jacques não apenas cita outros autores e dialoga com eles, mas os eleva ao estatuto de personagens nas tramas), no tempero afetivo formado de uma certa ironia, e finalmente, nas convocações que, desde “Antiterapias”, ele tem feito à psicanálise. É assim que, em “Nunca vou te perdoar por você ter me obrigado a te esquecer”, Jacques coloca a ciência do Inconsciente à prova. Afinal, não se convoca a psicanálise e suas premissas básicas se o escritor não suspeitasse que ela tem algo a dizer sobre o sofrimento emocional, as trapaças do amor, a constituição subjetiva e a própria escrita literária.

No meio da minha viagem pela obra de Jacques Fux, deparei-me com o parentesco entre dois títulos: “As coisas de que não me lembro sou” e “Nunca vou te perdoar por você ter me obrigado a te esquecer”. Nos dois, uma afirmação se apresenta em uma negação, gerando um estranhamento, já que as expressões obrigam quem lê a questionar a própria premissa, numa espécie de torção lógica, um paradoxo, no qual duas negações resultam em uma afirmação que se desconstrói a si mesma. Isto evoca o mecanismo de defesa chamado “negação”, cuja característica é afirmar o desejo ou o pensamento reprimido justamente ali onde ele é negado, mais ou menos assim: “não estou pensando na minha mãe”. Encontramos esses paradoxos em sinais de trânsito, o mais notável sendo um que vi em uma autoestrada nos Estados Unidos onde se podia ler: “Ignore este sinal”. O duplo-vínculo que disso resulta só poderia ser desfeito por meio de uma metacomunicação, ou seja, um comentário sobre a contradição.


Em torno desse paradoxo, Jacques Fux destaca a importância do esquecimento na construção de um sujeito e de tudo aquilo que ele vem a ser. Do ponto de vista psíquico, somos feitos de material recalcado. É preciso esquecer para pensar, numa alusão ao drama de “Funes, o memorioso”, do conto de Borges, no qual um homem não conseguia parar de se lembrar e, tragicamente, morre asfixiado, sufocado pelo excesso de lembranças.


Sobre a banda de Moebius do esquecimento e da memória, Jacques Fux constrói o eixo do romance “Herança”, no qual a impossibilidade expressada na proibição de se falar do trauma da Shoah e, portanto, de lembrá-lo, é transmitida ao longo de três gerações de mulheres, avó, filha e neta. Cada uma, ao seu próprio modo, constrói-se como sujeito diante do enigma, dos limites da linguagem para circunscrever, para dar sentido ao que não tem sentido, à brutalidade, à catástrofe subjetiva que é a proibição de dizer.
A apreensão desses aspectos constitutivos do psiquismo -- que tem os seus começos numa reação a tudo que é excessivo justamente por não ser imediatamente traduzível e, assim sendo, constitui um enigma a ser decifrado pelo sujeito --, é, segundo me parece, uma fonte de onde se alimenta a escrita de Fux em “Nunca vou te perdoar por você ter me obrigado a te esquecer”. O título não deixa de ser também um juramento – ou quem sabe uma maldição (“Nunca vou te perdoar...”), uma condenação imposta ao outro, que, paradoxalmente, acaba aprisionando, na tentativa de esquecer, aquele que a profere. Esse esforço paradoxal revela mais sobre aquele que tenta esquecer, do que aquele do qual se tenta esquecer.
Um jogo de espelhos se estabelece entre os personagens Jacques, o escritor (ele, mais afeito à lentidão dos introvertidos, mais acostumado ao tédio sartriano) e M., a atriz (ela, mais ávida em relação ao que virá no próximo minuto, já que o agora já passou, segue um ritmo imediatista do tipo “what’s next?”). Tudo ali converge para o reconhecimento de que, aos poucos, é preciso se diferenciar do outro. Chega um momento em que cada membro da parceria amorosa tem de se haver com as próprias fantasias e desejos projetados no outro, depois de ter passado algum tempo tentando neles se encaixar.


Tal como na letra da canção “Catavento e girassol”, de Guinga, “entre o escancaro e o contido, eu te pedi sustenido e você riu bemol [...] Eu sou você que se vai no sumidouro do espelho”, esse ponto de reconhecimento da mútua projeção seria um momento de liberação, em que cada um dos amantes teria oportunidade de conhecer o outro além das próprias miragens e, ao mesmo tempo, enxergar de onde procedem essas projeções.


No romance de Fux, cada amante, à sua maneira, reluta em ser devolvido para a fonte dessas projeções. Numa reviravolta impressionante, depois de uma longa doença que o acomete enquanto ele vivencia o luto pelo término do relacionamento com M., o personagem Jacques vai aos poucos se recuperando do ponto de vista físico e mental. O adoecimento nele, parceiro rejeitado, talvez não tenha tanto a ver com o rompimento em si, mas com a dor que procede do reconhecimento doloroso de que ele, Jacques, morreu dentro do coração de M. É uma dor dilacerante que vem do narcisismo ferido de saber-se morto dentro do outro, tal como lemos no livro “A separação dos amantes: uma fenomenologia da morte”, de Igor Caruso. Nesse ponto, Jacques finalmente se torna apto a retirar o véu das próprias idealizações.


Essa descoberta marca o momento em que ele pode ver quem M. realmente é.: “M de mim?”, me ocorreu pensar. Embora isso pareça acontecer tarde demais, pois o rompimento já aconteceu, pela primeira vez o personagem Jacques consegue assumir o próprio desejo e, tal como na tragédia de Riobaldo e Diadorim evocada nesse momento na narrativa, ele finalmente se anima a nomear o objeto de amor que, embora tenha estado sempre lá, se torna visível apenas quando é perdido. 

“Nunca vou te perdoar por você ter me obrigado a te esquecer”

De Jacques Fux
Faria e Silva
96 páginas
R$ 64,90

Ana Cecília Carvalho é escritora e psicanalista. Autora de, entre outros livros, “A poética do suicídio em Sylvia Plath”, “Os Mesmos e os Outros: livro dos ex”, “O foco das coisas & outras histórias”