Adérito Schneider
Especial para o EM
Os bons que me perdoem, mas nas melhores obras da literatura o que temos são seres de caráter duvidoso protagonizando as páginas. Pessoas questionáveis do ponto de vista ético, moral, político-ideológico e até mesmo com a sanidade posta à prova. Sim, estou falando de canalhas, de loucos, de doentes, quando não de completos imbecis. E é esse um dos grandes pontos fortes de “A confissão”, de Flávio Carneiro, romance sobre um homem que destrói as mulheres que passam por sua vida, personagem que poderia ser rotulado com muitas das qualidades anteriormente listadas, ainda que uma sombra de dúvida dificulte um pouco essa tarefa. Acreditar ou não nas confissões dessa alma perturbada, que expõe a uma vítima (e aos leitores) o pior de si? Leitores mais jovens e outros que desconhecem essa obra poderão conferir essa confissão em nova edição.
Flávio Carneiro é goiano radicado em terras fluminenses, onde atua como professor de literatura na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Hoje, talvez seja mais lembrado pelo recente Prêmio Jabuti (em 2021) na categoria de crônicas, com “Histórias ao redor” (Cousa, 2020). Ou pela sua carreira de mais de três décadas, com quase duas dezenas de livros publicados, trafegando por diversos gêneros (romance, conto, crônica, ensaio, infanto-juvenil...), além de ostentar em seu currículo experiências como roteirista de cinema. Contudo, um dos pontos fortes de sua carreira é o romance “A confissão”, publicado originalmente pela Rocco, em 2006. No livro “Fantástico brasileiro: o insólito literário do romantismo ao fantasismo”, os pesquisadores Bruno Anselmi Matangrano e Enéias Tavares citam essa obra como uma das precursoras do “horror cult” na literatura brasileira, que eles definem como “horror nascido de obras de alto teor experimental, tanto do ponto de vista da estrutura narrativa, quanto do ponto de vista da linguagem”.
De lá para cá, “A confissão” figurou em listas de leituras obrigatórias para vestibular, foi adotado em aulas de literatura da educação básica e do ensino superior, acumulou uma fortuna crítica considerável, com diversos artigos, dissertações de mestrado e teses de doutorado (com destaque para os trabalhos de Fernanda Marra, Juliana Ramos e Vera Maria Tietzmann Silva). Entretanto, de acordo com Miguel Jubé, editor da martelo casa editorial, que publica esta nova edição, trata-se de “um grande livro, mas que estava meio parado, parecia que estava adormecido. E é o tipo de livro que não deve adormecer, pela sua importância para nossa literatura. A gente espera que as marcas que ele deixou no imaginário dos antigos leitores volte e que pegue novos leitores”.
Segundo o próprio Flávio Carneiro, o romance compõe uma trilogia – ao lado de “O campeonato” (Rocco, 2002) e “A ilha” (Rocco, 2011) – em que o autor se arrisca pela “literatura de gênero”. Assim, sempre tendo o Rio de Janeiro como lugar em comum, as obras que compõe a trilogia são dos gêneros fantástico, policial e ficção científica, respectivamente. No caso de “A confissão”, o autor conta que “queria escrever um romance que tivesse algo do fantástico e também fosse quase um romance policial”, o que faz desse romance uma obra de difícil categorização. Para Jubé, sempre crítico ao preciosismo que diferencia “alta literatura” de “literatura de entretenimento”, este romance “tem várias camadas e, por isso, atinge os mais diversos tipos de leitores: o intelectual; o adolescente que vai fazer vestibular; o pessoal que gosta de literatura gótica... É um romance que está em vários limiares e isso faz dele um dos romances mais fortes da nossa literatura recente”.
De acordo com o editor, esta nova edição sai com pequenas alterações de edição, como alguns cortes, atualizações e nova revisão. Contudo, ele destaca que um dos pontos fortes é que, pela primeira vez – e agora firmando-se como um dos principais romances da literatura brasileira contemporânea – a nova edição vem acompanhada de paratextos, além de ilustrações internas de Hallina Beltrão, também autora da nova capa. Os destaques são o posfácio da escritora, pesquisadora e psicanalista Fernanda Marra, autora da dissertação “A confissão antropofágica de Flávio Carneiro”, e a orelha da escritora Maria José Silveira, além da presença de Milton Hatoum, Luiz Ruffato e Beatriz Resende na quarta capa. Para Jubé, “era importante que este livro tivesse uma presença feminina muito forte. É a visão de mulheres sobre uma narrativa de um sujeito que prejudica as mulheres. Então, eu acho que isso faz o conjunto desta nova edição ser tão diferenciada e especial”.
“A confissão” é ao mesmo tempo um romance fácil e gostoso de ler, daquelas leituras divertidas que nos impede de parar de virar uma página atrás da outra, mas denso a ponto de possibilitar camadas inesgotáveis de interpretação. Para Fernanda Marra, que dedicou ao menos dois anos de sua vida à obra, “o que Flávio Carneiro alcançou com esse seu narrador, ou talvez, o que esse narrador exigiu do autor, é coisa rara no céu da literatura. Há algo da ordem de uma entrega desmedida e assustadora na criação desse personagem. É ele, o narrador-confessor, quem faz com que essa obra permeie décadas e continue nos colocando a trabalho. É ele, o narrador, quem traz densidade para as camadas de um discurso impermeável, que não abre espaço para mais ninguém. O seu dizer, que impõe silêncio, é a máquina que nos faz pensar e querer saber, ali, onde a verdade bascula e entrega”. Um mistério que, com uma segunda edição, poderá perturbar as mentes de uma nova geração de leitores.
“A confissão”
De Flávio Carneiro
Ilustrações e capa: Hallina Beltrão
Martelo Casa Editorial
304 páginas
R$ 74,90
*Adérito Schneider é jornalista e escritor, autor de “O rastro da lesma no fio da navalha” (Patuá, 2022) e organizador das antologias “Cidade sombria” (MMArte, 2018) e “Cidade infundada” (martelo casa editorial, 2022).