María Negroni transforma a literatura em uma forma elegante de rancor ao destrinchar as mágoas sofridas na sua relação materna  -  (crédito: arquivo pessoal)

María Negroni transforma a literatura em uma forma elegante de rancor ao destrinchar as mágoas sofridas na sua relação materna

crédito: arquivo pessoal

Escrito em 1919, “Carta ao pai” é considerado um dos principais trabalhos do escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924). Em um longo desabafo, contando com mais de 100 páginas escritas à mão, ele revela toda a mágoa que sente em relação ao seu pai, o comerciante Hermann Kafka, revelando como se sente pequeno diante do autoritarismo e do desprezo que ele recebia por parte do patriarca. Kafka nunca entregou a carta, e não se sabe se Hermann, que morreu sete anos depois do filho, chegou a ler o texto. Certamente, este não foi o caso da mãe da escritora argentina María Negroni, que morreu antes de "O coração do dano" ser publicado, em 2021. No livro, que ganhou versão nacional em 2023, pela editora Poente, selo da WMF Martins Fontes, ela revela sua visão íntima das complexidades emocionais e psicológicas em relação à sua figura materna.

As semelhanças com Kafka, porém, terminam aí. Enquanto "Carta ao pai" – no que pese sua qualidade literária – é obviamente uma missiva com um único destinatário, em "O coração do dano", María Negroni deixa claro que seu objetivo com o texto é uma espécie de vingança da relação conturbada e conflituosa que viveu. "A literatura é uma forma elegante de rancor", admite María, logo no início do livro, para completar: "Que frase escandalosa".

O texto é, como boa parte da obra de María Negroni, inclassificável. Ainda que se insinue como carta, ele se posiciona como literatura, transitando entre a autobiografia e a ficção. É tentador chamar o livro de poema, apesar de que em vários momentos ele seja evidentemente prosa, assumindo a certa altura um tom quase de ensaio. As frases curtas e bem demarcadas impõem um ritmo de leitura cadenciado, obrigando o leitor a absorvê-las lentamente. A técnica cria um efeito que qualquer filho que já tentou conversar com pais que não costumam ouvir pode se identificar, o de só passar para a próxima frase quando a anterior foi devidamente processada.

Enquanto destrincha a relação com a mãe desde a infância, María detalha também as situações que a levaram a se tornar uma escritora, começando pela ausência de livros da primeira casa onde a família viveu e passando pelo contato com a clássica coleção "Tesouro da juventude" durante a adolescência, e o acesso a uma biblioteca repleta de títulos como "Dom Quixote", "Madame Bovary", "O diário de Anne Frank", entre outros clássicos. Ao citar ainda suas influências e referências que foram fundamentais na sua escrita, indo de Fernando Pessoa a Edmond Jabès, ela dá, ainda que involuntariamente, uma aula de literatura. Para o leitor brasileiro, chamam atenção também as citações a nomes como Guimarães Rosa, Paulo Leminski e Clarice Lispector – que exerceu uma evidente influência na escrita e na temática de María Negroni.

"Um livro é um cemitério belo", conclui a autora a certa altura, quando entende que escrever passou finalmente a ocupar emocionalmente o espaço de sua mãe – e de sua família, cada vez mais fragmentada. Nesse sentido, a ausência emocional da mãe se torna o principal impulsionador da escrita de María, que emerge justamente como forma de suprir uma necessidade do afeto materno, que só se manifesta em casos excepcionais e de forma brusca e dura, como quando a autora precisa de ajuda com uma bebê recém-nascida, ou quando ela passa a cuidar da mãe no fim da vida.

"Ouvi você literalmente parar de respirar, Mãe", conta a escritora, no fim do seu poema-texto-ensaio-desabafo. Nesse momento, a vingança em forma de livro de María começa a ser elaborada – mas não como Kafka queria, para uma punição, o que seria, obviamente, impossível –, como uma forma de encerrar ciclos, fechar feridas e superar traumas talvez insuperáveis. Ou seja: a literatura enquanto cura.

“O CORAÇÃO DO DANO”
• De María Negroni
• Tradução: Paloma Vidal
• 136 páginas
• Editora Poente
• R$ 59,90