Um escritor é um armazém de memórias, afirmou Leonardo Padura em um dos ensaios incluídos no livro “Água por todos os lados”. E de obsessões, acrescenta o autor cubano, em entrevista a respeito de seu mais recente lançamento no Brasil, “Pessoas decentes” (Boitempo).
Mais uma vez protagonizado pelo policial aposentado Mario Conde, o novo romance alterna tempos e vozes narrativas na investigação de assassinatos cometidos na Havana do início do século 20 e em 2016, às vésperas da visita do então presidente norte-americano Barack Obama e do primeiro show dos Rolling Stones em Cuba.
Como nos livros anteriores, a investigação de Conde descortina aspectos sociais, econômicos, políticos, históricos e existenciais do povo cubano na visão de um de seus escritores mais conhecidos no mundo, ganhador do Prêmio Princesa das Astúrias em 2015 por fazer da obra uma “soberba aventura do diálogo e da liberdade”.
Nascido em Havana em 1955, Leonardo Padura constantemente pontua suas críticas ao regime cubano nos livros e em entrevistas. “Acho que me aceitam como um mal inevitável. Mas nunca saio nos jornais, televisão, rádio. Os meus livros são pouco e mal publicados. Continuo a viver em Cuba porque preciso de Cuba para viver e para escrever”, declarou Padura ao jornal português Diário de Notícias. “Só de pensar volto a me sentir pessoa. Nesse país, até isso às vezes é difícil”, constata Mario Conde, em “Pessoas decentes”.
Aposentado da atividade policial, o sexagenário Conde se dedica, sem muito sucesso, à venda de compra e venda de livros raros. O próprio personagem, que se define como “um habitante do século 20 infiltrado no século 21”, reconhece que, invadido por “persistentes divagações históricas e literárias”, não é mais o diligente investigador de outrora: “Precisava concentrar-se, atentar, observar, buscar no presente e, com sua habilidade enferrujada e destreinada, não conseguiu saber se ainda seria capaz de encontrar alguma coisa.” Ele é convocado por ex-colega de trabalho para esclarecer a morte violenta de um antigo burocrata do governo cubano, responsável pela destruição da carreira de diversos artistas.
Entre as “memórias lacerantes do passado e as frágeis perspectivas do futuro, inclusive as ameaças da velhice e da morte”, Mario Conde avança na investigação ao mesmo tempo em que a narrativa recua para reconstituir, com a argúcia e minúcia características da prosa de Padura, a história de um oficial da polícia que, ao tentar esclarecer o assassinato e esquartejamento de uma prostituta em 1909, se imiscui na trajetória trágica de um personagem real: o cafetão Alberto Yarini (1882-1910).
De origem aristocrática, Yarini chegou a ser conhecido como o Rei da Prostituição no bairro de San Isidro antes de ser assassinado. Carismático e violento, Yarini é definido na narrativa como “enigmático” e um líder político em formação: “Ele acreditava na necessidade de um pulso de ferro capaz de retificar os rumos nacionais e, de algum modo, previu o que muitos anos depois seria nosso futuro”, escreve o autor do best seller “O homem que amava os cachorros”, novamente entrelaçando ficção e realidade.
Como o próprio Padura observa em “Pessoas decentes”, “os caminhos da literatura e da vida têm a caprichosa tentação de se cruzarem e, com suas fricções, desnudar essências inquietantes, às vezes reveladoras.”
Leia, a seguir, a entrevista de Leonardo Padura ao Pensar do Estado de Minas.
Qual o ponto de partida de “Pessoas decentes”?
Como sempre, minhas obsessões. Trabalho com ideias que me assombram e que, de alguma forma misteriosa, se condensam como possíveis assuntos para criar um romance. Neste caso, foram duas, que se tornaram três.
A primeira obsessão estava relacionada aos processos de repressão cultural ocorridos em Cuba na década de 1970, uma política de censura, repressão e cancelamento que mudou seus métodos, mas não sua essência. O segundo, o personagem histórico de Alberto Yarini, um político que atuou no início do século passado e que se tornou um mito no imaginário cubano, um personagem que me assombra há anos e atraente por suas muitas contradições.
E quando comecei a escrever sobre essas duas obsessões, vi que estava trabalhando em uma terceira, que é aquele destino cubano que nos faz pensar que vamos alcançar algo, alcançar o céu e, como Ícaro, acabamos caindo sem alcançar o que sonhávamos que poderíamos obter.
“Tarde demais” é a primeira frase do livro. O que é “tarde demais” para um escritor e o que ainda pode ser feito?
Bem, é tarde demais para muitas coisas. O tempo e a história são implacáveis. O que não fizemos em um momento não podemos tentar replicar em outro. Para mim, é tarde demais para tentar ser um bom jogador de beisebol, por exemplo. E o romance fala sobre como é tarde para desfrutar da redenção. É tarde demais para perdoar algumas coisas.
O que o levou a ambientar a parte principal da história em Havana em 2016, durante a visita de Obama e nos dias que antecederam um show dos Rolling Stones? Um dos motivos pode ser o fato de que, como afirma um dos personagens, “o dinheiro se movimenta”?
O dinheiro se moveu e a sociedade se moveu e, acima de tudo, por um tempo as esperanças se moveram, muitas delas já perdidas e de repente ressuscitaram. As pessoas gostaram desses momentos e achamos que as coisas no país poderiam mudar para melhor.
Mas foi tudo, como diz Conde, uma pausa entre dois turnos de aulas. Um parêntese num processo de crise de todo o tipo que o país já tinha vivido anteriormente e que agora volta a viver, com grande intensidade, porque falta tudo, incluindo a esperança de que as coisas possam melhorar. É por isso que as pessoas estão indo embora. Em três anos, poderemos estar perto de um milhão de cubanos que emigraram em busca de uma solução pessoal para um conflito nacional.
Por que o narrador acredita que “Havana gradualmente deixou de ser Havana”? Quais são os sinais mais evidentes dessa transformação e o que permanece inalterado?
Falo sobre esse tema no livro que acabei de terminar e que será publicado em espanhol este ano. Faço um passeio, a partir da minha perspectiva e experiência, pelos 60 anos de vida da cidade, observando perdas, transformações, desconstruções.
Havana é uma cidade que foi povoada por ruínas, físicas e humanas, que perdeu muitas referências históricas ou viu outras se deteriorarem ou se transformarem. Sinto que às vezes esta cidade a que pertenço e sobre a qual escrevo há mais de 40 anos, às vezes se torna estranha para mim.
Eu não a reconheço e ela me rejeita. Felizmente – ou infelizmente – o mar ainda está lá, o Malecón como a última ou primeira fronteira da cidade.
Em “Pessoas decentes”, há alternância de dois tempos e duas vozes narrativas. Como tomou essa decisão? O que muda quando escreve na primeira pessoa?
Foi uma decisão de estilo e conceito. A história protagonizada pelo meu personagem Mario Conde é narrada com o mesmo estilo e perspectiva dos romances anteriores, uma terceira pessoa muito próxima do protagonista e de seu pensamento e filosofia de vida.
A história de 1910, sendo escrita por outra “mão”, por um personagem (não vou dizer quem é), era mais adequada àquela primeira pessoa mais reflexiva, mais a voz interior de outro personagem, aquele criado pela narração daquele episódio. E fiz isso porque gosto de emocionar o leitor, de forçá-lo a pensar.
Como foi recriar Havana no início do século 20? Onde terminou a pesquisa e começou a invenção? O que mais o impressionou na cidade naquela época?
Há pouca invenção. É uma Havana muito bem documentada, muito pesquisada para poder movimentar esses personagens em uma época que remonta a 1910. Era uma Havana em crescimento, recebendo os benefícios da modernidade do século 20, que queria se afastar de seu passado colonial.
Uma Havana à qual devemos muitos dos símbolos da cidade, como o já mencionado e descrito caso de El Malecón, parte essencial da cidade, ou os cafés, as avenidas, as lojas que então foram construídas e que deram caráter a Havana.
Como Conde, você se sente como um “habitante do século 20 infiltrado no 21”?
Sem dúvida. Basta dizer que eu não tenho redes sociais.
“Escrever nunca foi fácil”, diz Conde, citando “alguém que entende do assunto”. Escrever fica mais fácil ou mais difícil para você a cada romance?
Esqueça: nunca é fácil. E estou percebendo isso novamente agora quando começo a escrever um novo romance. Todos os dias tenho que voltar e me autocriticar para tentar encontrar o melhor estilo, a estrutura certa, o tom da narrativa, o sentido da história.
A experiência ajuda, mas não resolve os problemas de um novo romance porque é, justamente, uma nova experiência. E se escrever se torna fácil, então o que Hemingway chamou de “detector de merda inato” parou de funcionar: você está escrevendo merda e acha que é um gênio. É aí que você está ferrado.
“A vida do meu país, o que acontece no meu país e as minhas opiniões sobre a sociedade em que vivo não podem estar distantes de mim”, escreveu em 2011, defendendo que os escritores tenham uma “consciência cívica”. Isso também está nos seus livros?
É claro. E acho que a resposta também está nos meus livros e é muito fácil de encontrar. Não escrevo literatura de natureza política, mas escrevo literatura com um conteúdo social muito evidente com o qual reafirmo essa vocação cívica.
Falo da minha realidade de dentro da minha realidade (vocês sabem que escrevo e vivo em Cuba) e tento narrar essa vida, especialmente do ponto de vista da minha geração, das frustrações e esperanças, dos sacrifícios e perdas da minha geração.
Cada vez que escrevo um romance pergunto-me por que vou escrevê-lo. E a resposta está sempre naquela mensagem social que pretendo enviar: falar de liberdade, medo, corrupção social e política, memória e sua perda, enfim...
“A onda de exigências ao politicamente correto (que não diz respeito apenas aos julgamentos políticos) está agora a varrer o mundo”, você escreveu em artigo no “El País’. Acredita que Mario Conde pode ser atingido por essa onda?
Espero que não. O escritor deve ser politicamente incorreto. A correção deve ser ética, respeitando certos valores e sensibilidades. O resto é questionável e, acima de tudo, a política é questionável. E, além disso, Conde é, humana e socialmente, muito incorreto politicamente, mas numa dialética muito especial porque é um homem fiel, íntegro, uma pessoa decente, a mais decente que conheço. Para ser honesto, ele é mais decente do que eu.
Qual foi a coisa mais marcante na adaptação de seus livros para o audiovisual?
Foi uma produção espanhola, da Tornasol Films. O mais interessante foi, sem dúvida, a transferência de uma história de uma língua, a literária, para outra completamente diferente, o audiovisual. E foi um grande desafio, porque achávamos que os romances eram muito cinematográficos e na realidade são muito literários, muito verbais. Mas acho que o esforço valeu a pena de forma muito satisfatória e a série teve uma longa duração, com prêmios importantes incluídos.
“Poucas formas literárias exigem tanto da cumplicidade do leitor como a história policial (que é sempre uma viagem em busca de uma verdade), e nessa condição ou característica reside uma das chaves da sua longa popularidade”, escreveu também no “El País”. Como fazer isso?
Muito fácil: dar ao leitor boa literatura e desafiar sua inteligência. Deixá-lo fazer parte da história por meio da curiosidade, perguntas, dúvidas. O melhor leitor deve ser o leitor ativo, e essa atividade envolve o uso da sensibilidade e da inteligência. E assim você cria essa cumplicidade entre o que você diz e o que ele lê, entre o que você propõe e o que ele conclui. É um jogo maravilhoso.
Quais são as lembranças mais marcantes de suas viagens ao Brasil? O que é mais parecido com Cuba?
O que mais se assemelha a Cuba no Brasil? Bom, todo mundo sabe disso: Bahia! Mas também gosto muito quando estou no Rio, fico deslumbrado com a história quando estou em Paraty, fico louco comendo carnes de alta qualidade quando estou em território gaúcho, e dá vontade de correr e gritar quando sofro com o trânsito horrível de São Paulo. Eu amo o Brasil.
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Trechos
De “Pessoas decentes” (tradução de Monica Stahel)
“Percebia-se a intensidade do momento só de olhar, porque se desejava tornar muito evidente a advertência: estamos aqui. As ruas de Havana pareciam o desfile do carnaval de fantasias da polícia. Patrulhas, caminhões, motos de guardas de trânsito e muitos fardados a pé de diferentes forças e cores (verde-oliva, azul, preto, boinas vermelhas, tropas especiais e outras gamas do espectro) se alternavam e, inclusive sob uma chuva intempestiva, praticamente cobriam cada esquina da cidade.
Lógico: nem todos os dias chegava a Cuba um presidente dos Estados Unidos. Na verdade, nem todos os séculos. E o acontecimento (digamos que seja “histórico”) havia disparado, ansiosamente e com alguma razão, as expectativas das pessoas. Se as relações com o belicoso vizinho do norte melhorassem, deveriam melhorar as coisas para os habitantes da ilha, pensavam muitos. Se as tensões políticas se reduzissem, se os ressentimentos históricos se aliviassem, talvez certos benefícios descessem até a realidade cotidiana, era o que se dizia, se esperava, se desejava. E Obama eliminaria o bloqueio?
(...)
Mario Conde, talvez por seu pessimismo visceral, talvez por ser demasiado histórico e, para algumas questões, um desconfiado consumado, tinha a sensação de que o país estava apenas irando umas férias, que em algum momento terminariam e voltaria o rigor no qual vivera mais de cinquenta de seus sessenta anos de existência. A realidade e a experiência lhe avisavam que as relações com os inquilinos de cima sempre tinham sido traumáticas e para contextualizar a questão, naquele exato momento havia muitos interesses empenhados na tensão e poucos, com poder real, inclinados à distensão. Uma distensão que tampouco parecia agradar ao governo da ilha, pois uma bonança econômica maior, uma dependência menor das pessoas com relação ao Estado todo-poderoso implicaria outro relaxamento: o do controle. E por isso Conde nem se entusiasmava, nem alimentava grandes esperanças.”
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Padura comenta clássico de Carpentier
Em um dos ensaios incluídos no livro de não ficção “Água por todos os lados”, lançado em 2020 no Brasil pela Boitempo, Leonardo Padura analisa um dos clássicos da literatura latino-americana: “O século das luzes”, de Alejo Carpentier. Publicado pela primeira vez em 1962, o livro ganhará em março uma nova edição brasileira pela Companhia das Letras. “É um dos romances mais importantes da literatura latino-americana, pelo que diz e como diz”, acredita Leonardo Padura. “É um romance com um estilo que participa do neobarroco, com um conceito que mostra o caráter da singularidade universal do continente, ou seja, o que Carpentier definiu como ‘o maravilhoso real americano’ e com um enredo que nos fala de utopia e liberdade, da luta para concretizar utopias e alcançar a liberdade e quantas vezes esses processos são frustrados. Esta é uma parte muito infeliz da história do mundo e, em particular, do nosso continente”, define o autor de “O homem que amava os cachorros”.
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“Pessoas decentes”
• De Leonardo Padura
• Tradução de Monica Stahel
• Boitempo editora
• 344 páginas
• R$ 89,90
“O século das luzes”
• De Alejo Carpentier
• Tradução de Sérgio Molina
• Companhia das Letras
• 384 páginas
• Preço a definir