A ciência indica que os primeiros seres humanos saíram da região de Jebel Irhoud, no Marrocos, para dominar todos os continentes cerca de 315 mil anos atrás. Enquanto os grandes animais caminhavam pela terra, o homo sapiens saia do norte da África para colonizar um planeta hostil e primitivo em ritmo acelerado, chegando em quase todos os cantos em um espaço há 32 mil anos. No entanto, a ocupação das Américas ainda permanece com páginas para serem escritas e, nos últimos anos, tornou-se palco de disputa científica entre latinos, norte-americanos e europeus.


Essa é a história contada pelo jornalista Bernardo Esteves, repórter da revista Piauí, em seu mais novo livro “Admirável Novo Mundo: uma história da ocupação humana nas Américas”(Companhia das letras). De Montana, nos Estados Unidos, até a província de Llanquihue, no Chile, o especialista em divulgação científica faz um giro pelos sítios arqueológicos do continente em uma tentativa de refazer os passos dos arqueólogos que desvendaram as origens dos primeiros americanos.


Em um livro que teria tudo para se tornar um emaranhado de datas e informações dispostas como um artigo acadêmico, Esteves cria uma leitura fluida que convida à reflexão para tentar responder a pergunta: “de onde viemos?”. Assim, o autor cria um mapa partindo de Minas Gerais, passando por toda América Latina e partes dos Estados Unidos e México, com o intuito de desvendar o que ele classifica como sua "controvérsia científica favorita”. Repleta de “picuinhas” e intrigas entre os pesquisadores, a história dos primeiros americanos se tornou a história da arqueologia no continente.


Partindo da Gruta do Sumidouro, em Lagoa Santa, quando o dinamarquês Peter Lund explorou a terra antes mesmo de existir a capital Belo Horizonte, o jornalista enxerga em Minas um lugar privilegiado para entender o caminho feito pelos homo sapiens. Longe do istmo do Panamá, soerguido há 3,5 milhões de anos conectando os dois continentes americanos, e longe da Beríngia, a faixa de terra que conecta a Sibéria com a América do Norte, aberta há 35,7 mil anos, as descobertas de vestígios humanos junto com a Megafauna (os mamíferos gigantes), estimados em quase 11 mil anos, parecem colocar a região como um início ideal.

 




Ocorre que, durante anos, Lund foi contestado por seus pares, uma vez que a teoria mais aceita seria de que os humanos teriam chegado na América do Norte pela passagem da Sibéria ainda durante a última Era do Gelo, cerca de 26 mil anos atrás. No entanto, os primeiros registros que se tornaram o paradigma da ocupação vinham do povo de Clovis, uma cultura de lascadores de pedra e produtores de pontas de lança acanaladas que teriam se espalhado pelos Estados Unidos há 13 mil anos, encontrados em Blackwater Draw, no Novo México. A diferença de apenas dois milênios colocariam os novos colonizadores como contemporâneos dos ocupantes de Lagoa Santa, mas se acreditava que os “mineiros” não teriam condições de descer as américas em tão pouco tempo.


Blackwater Draw foi descoberto em 1932, e durante anos os defensores da primazia de Clovis criaram uma verdadeira polícia para refutar achados mais antigos que aqueles. “O poder de fogo da polícia de Clovis vinha da força com que a primazia dessa cultura tinha se firmado entre os especialistas. Quando um paradigma se consolida numa disciplina, ele determina a forma como os cientistas formulam seus problemas e pensam os meios para resolvê-los”, explica Bernardo Esteves.


Sítios brasileiros estavam sendo rapidamente descartados e rechaçados na área, como, por exemplo, as descobertas da arqueóloga franco-brasileira Niède Guidon no Boqueirão da Pedra Furada, na icônica Serra da Capivara, no Piauí. A pesquisadora fez carreira no local datando objetos entre 100 mil e 50 mil anos atrás, no entanto, uma data mais antiga que a abertura da Sibéria significaria uma ocupação pelos oceanos e não terrestre. Bernardo Esteves ressalta que o modelo nunca foi considerado “com seriedade” por outros arqueólogos e pontua que o fato de ser uma mulher em um país periférico “decerto ajudou” a minar a credibilidade.


Eventualmente, até Luzia, considerada a primeira brasileira, encontrada na Lapa Vermelha IV, na região de Confins em Minas Gerais, foi contestada. Mas o paradigma haveria de ser quebrado. Em 1997 a comunidade científica formou consenso sobre a ocupação humana em Monte Verde, no Chile, e aceitou sítios datados em 14,6 mil anos em um local muito longe de qualquer vestígio do povo de Clovis. Os trabalhos no local duraram anos, começando em 1976, mas finalmente as teorias da ocupação nas Américas voltaram a ser repensadas.


Hoje, com a evolução da ciência e a era das pesquisas com material genético, Bernardo Esteves ainda chama atenção para os problemas éticos que cercam a discussão do uso do DNA dos povos indígenas. O trabalho do autor nos ajuda a pensar como os povos originários se encaixam nessa história, sendo descendentes dos primeiros humanos, e conferindo pistas não apenas da antiguidade da linhagem, mas da cultura que hoje pulsa no interior do continente.


As mudanças da tecnologia e dos métodos de pesquisa conferiram ao livro um aspecto perecível reconhecido pelo próprio autor, que ao final ressalta, “novas peças vão continuar a surgir”. “Outros sítios arqueológicos e terras indígenas virão contar detalhes que ainda desconhecemos. Alguns deles talvez mudem novamente a imagem do quebra-cabeça, e é certo que isso aconteça caso a controvérsia sobre a ocupação das Américas venha a ser pacificada”, frisou Bernardo Esteves.

 

Esses e outros detalhes sobre a história dos humanos na América, você confere na entrevista do autor ao Pensar.


O livro começa com o dinamarquês Peter Lund e os achados em Lagoa Santa. Hoje qual é a importância dele na história da ocupação das Américas?


Ele é considerado pioneiro de pelo menos três disciplinas: arqueologia, que investiga as culturas dos povos antigos a partir dos vestígios deixados por eles; da paleontologia que é o estudo das espécies extintas, que é a biologia do passado; e a espeleologia, o estudo das cavernas. As observações que ele fez na região de Lagoa Santa são muito importantes por lançar esses três campos nas Américas, já que elas estavam começando a se consolidar na Europa. De certa maneira ele esbarra nas questões que até hoje estão sendo perseguidas pelos estudiosos desse campo: Há quanto tempo essas pessoas estão aqui? Qual a antiguidade dos humanos que estavam aqui. Ele não tinha ferramentas metodológicas para poder responder essas perguntas acima de qualquer dúvida, mas esbarra nas perguntas que até hoje as pessoas não tem resposta. Hoje a gente pode dizer que os humanos conviveram com a megafauna na região de Lagoa Santa, mas a gente ainda não tem uma resposta certa para a pergunta: 'Há quanto tempo essas pessoas estavam aqui?’. Ele continua sendo uma figura de extrema importância histórica para essas disciplinas, porque ele coloca essas perguntas pela primeira vez


E como Minas Gerais se situa nessa controvérsia?


A região de Lagoa Santa é conhecida mundialmente pela riqueza dos seus sítios arqueológicos. É um dos pontos mais importantes da arqueologia das Américas, seja pela quantidade de sítios, mas sobretudo pela quantidade de sepultamentos. Quando eu falo da região de Lagoa Santa, a gente está falando de Confins, Matozinhos, enfim, uma série de municípios ali do torno que são considerados nesse mesmo tipo de formação geológica: o carste, essas rochas calcárias que favorecem a preservação dos fósseis nas cavernas.


É uma localidade conhecida em todo o continente e em outras partes do mundo, também pelas riquezas dos achados que foram feitos aqui. No livro tem também o sítio do Vale do Peruaçu, bem no Norte de Minas, quase fronteira com a Bahia, que tem cavernas com pinturas rupestres belíssimas e sítios bastante antigos. São sítios de destaque para o estudo do povoamento do continente. Os sítios da região de Lagoa Santa foram estudados por gerações e gerações de arqueólogos, desde Peter Lund. Essa tradição arqueológica não é só do passado, ela continua sendo praticada e exercida no presente.


O livro trata não apenas da história da ocupação humana no continente, mas também da história da ciência. Como os latinos, em especial os brasileiros, hoje têm se situado na arqueologia?


Ganhando protagonismo cada vez maior. Seja com a formação de novas gerações de pesquisadores, ou com a consolidação da disciplina no Brasil. O próprio Walter Neves (pesquisador da Universidade de São Paulo), que eu cito, costumava dizer em tom de piada que a única saída para a arqueologia brasileira era o aeroporto de Guarulhos, o Galeão, dizendo que os arqueólogos precisavam se formar no exterior. Cada vez mais temos cursos muitos sólidos aqui no Brasil, formação de qualidade sendo oferecida. Se no passado havia sempre pesquisadores estrangeiros trabalhando junto com os brasileiros, hoje cada vez mais a gente dá conta de fazer pesquisas sozinhos. A gente está colocando também em termos regionais, onde mais arqueólogos se empoderam para poder apresentar suas próprias narrativas sobre o povoamento dos continentes, narrativas que eram mais monopólio dos seus pares da América do Norte. A gente vê um movimento de pesquisadores que surgem contra essas narrativas e apresentam a sua própria perspectiva sobre os processos de povoamento que, pelo visto, foram mais plurais do que sempre foram apresentados.


Um dos assuntos mais importantes que você traz no livro é o papel dos povos indígenas nessa controvérsia. Hoje é um consenso de que a história da origem dos humanos das Américas passa pelos nossos povos originários?


Eu acho que necessariamente sim. Primeiro porque essa história dos primeiros americanos é a história dos ancestrais dos indígenas contemporâneos, então seria tolo ignorar ou negligenciar as contribuições que eles podem dar para esse entendimento. São contribuições que vão desde elementos que eles trazem de suas tradições orais, de suas práticas e costumes, sua mitologia. Eles ajudam a gente entender, para começo de conversa, o próprio território que eles estão espalhados, os locais que eles preferem coletar determinado tipos de espécies, vegetais, caçar determinados tipos de animais, enfim, os lugares que são sagrados para eles.

 

Tudo isso pode dar pistas sobre onde a gente deveria pesquisar sítios arqueológicos, mas eu sustento também que a gente deveria ouvir as histórias de origem deles, que podem trazer elementos que apontam pistas que devem ser consideradas pelos pesquisadores, ao invés de simplesmente descartar como narrativas puramente mitológicas. Se por um lado acho que deveríamos tentar incorporar a perspectiva deles, acho que também deveríamos incorporar, e isso vem acontecendo aos poucos, o próprio fazer científico. A nossa ciência, hoje, não reflete a diversidade da nossa população, mas se a gente trouxer as vozes negras, indígenas, para a prática da ciência, acho que a gente vai ter uma ciência mais diversa e com um repertório mais amplo de métodos e perspectivas, que tendem a trazer mais respostas.


Você acha que os cientistas estão mais preocupados com a questão ética das pesquisas com os povos indígenas?


Com certeza. Primeiro que os episódios de coleta de sangue indígena no passado, esse que eu menciono que tá por trás de descobertas importantes, é de 1987. Essas coletas feitas no passado eram feitas no momento em que a regulamentação da pesquisa em seres humanos no Brasil estava muito mais frouxa. Hoje, o tipo de autorizações e consentimentos que você precisa são muito mais íntimos, precisam de uma documentação muito maior. Você precisa documentar inclusive que os sujeitos humanos com quem você vai fazer pesquisa estão cientes do que está sendo feito, das implicações.


O fortalecimento da regulamentação para pesquisa com seres humanos, foi em parte motivado até pelas denúncias que fizeram do uso de DNA indígena no passado. O DNA dos povos indígenas brasileiros é tratado como se fosse de domínio público por pesquisadores, assim se você é geneticista de populações e quer estudar o DNA dos 'Karitiana' ou dos 'Paiter Suruí' você pede para o projeto da diversidade do Genoma Humano e eles te enviam essas amostras sem que você precise consultá-los, informar a eles os resultados dessa pesquisa. Essas linhagens celulares são usadas para pesquisas feitas com métodos que não existiam na época em que foram coletadas. Deveria haver, alinhado com outros pesquisadores, uma atualização do processo de consentimento informado.


Como os povos indígenas têm enxergado a história da ocupação das Américas?


Eles possuem o interesse em contribuir para as pesquisas? Eu não quero falar em nome deles. Conversei com algumas lideranças sobre essas questões e aí a gente tem uma variedade grande de pontos de vista, vejo até um recorte geracional. Por exemplo, a Txai Suruí, que é a líder indígena e ativista que falou na abertura da COP de Glasgow e virou uma voz relevante do ambientalismo e da causa indígena, quando você conversa com ela, se tem um abraço ao conhecimento científico. Ela gosta muito de citar os trabalhos que apontam que o povo dela está na Amazônia há vários milhares de anos.


Eu conversei com dois casais de anciões dos Paiter Suruí, porque justamente eram pessoas que poderiam se lembrar das coletas de sangue que eu considero problemática, no fim das contas eles não se lembraram dessa coleta específica, mas de outras. Entre esses anciãos, pelo menos um deles manifestou profundo desinteresse pelo olhar da ciência para a ancestralidade dele. Mas também entre eles, um segundo ancião disse que gosta da ideia de que essa amostra biológica dele seja usada para estudar a própria ancestralidade, ele tem essa curiosidade. Mas estou falando do ponto de vista de alguns indivíduos, não posso falar coletivamente.


Você também argumenta que toda essa história tem mudado muito rápido e que o próprio livro precisou ser atualizado. Qual a principal teoria da ocupação das Américas e o que de novo tem surgido?


No capítulo final eu tento fazer essa síntese, mas é difícil pois não tem uma posição que seja consensual. Eu posso dizer que existe uma maioria que vai defender uma ocupação que se deu entre 16 mil e 21 mil anos atrás. Mas a gente tem um número bastante expressivo de pesquisadores que defendem uma entrada anterior a isso, há mais de 20 mil anos atrás, e aí poderia ter sido a 30, 40 mil anos. Enfim, ainda não está super claro.


Depende daqueles que você considerar os achados arqueológicos válidos para o continente. Eu diria que os arqueólogos hoje se dividem entre essas duas vertentes. Talvez o mainstream seja a entrada entre 16 e 21 mil anos, e um número menor que defende uma entrada mais antiga. Tudo isso está mudando muito rapidamente, o livro acabou de chegar às livrarias e, de certa maneira, já está desatualizado. No último capítulo, por exemplo, eu falo de um sítio chamado White Sands, onde foram encontradas algumas pegadas do Novo México, ele estava envolto ainda em controvérsias, as datações desse sítio apontam até 23 mil anos de idade e portanto estariam incompatíveis com a visão do mainstream. É uma história em curso. O esperado mesmo é que novas peças que se juntem ao quebra-cabeça e ajudem a compor um quadro mais nítido.

 

“ADMIRÁVEL NOVO MUNDO: UMA HISTÓRIA
DA OCUPAÇÃO HUMANA NAS AMÉRICAS”


- De Bernardo Esteves


- Companhia das Letras


- R$ 109,90


- 504 páginas

 

Capa do livro

Reprodução

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