MÁRIO ALEX ROSA
ESPECIAL PARA O EM

Se no mês de fevereiro tem carnaval, tem também o aniversário de um dos poetas mais importantes e expressivos da poesia brasileira da segunda metade do século 20 e que já avança no século 21: Armando Freitas Filho faz 84 anos neste 18 de fevereiro de 2024. Como ele mesmo diz, carioca da gema, da Urca, onde um pedacinho da unha da pedra do Pão de Açúcar ocupa o quintal de sua casa, na rua Cândido Graffée. Da sua janela sente-se a maresia do mar. É dela, fechada ou aberta, que o poeta respira os ares das palavras que chegam até ele. De lá do seu “Lar”, numerou “66” ao poema da série Numeral:


A tinta que molha a pena é de pincel
a paisagem sai com verniz idêntico
às variações de luz – montanha, céu, pôr do sol
amanhecer no mar. Reproduz o upgrade e o dégradé
das amendoeiras que anunciam estações distantes
no mesmo espaço-tempo.
À tinta de caneta, é difícil flagrar este entretom
que, uma vez escrito, não se descreveria.


17 VII 2004

 

Captar as luzes como os pintores impressionistas talvez seja o desejo do poeta. A paisagem exuberante do Rio de Janeiro guarda e acorda os sentidos do poeta tão sensível às contradições da paisagem natural e urbana, que, não menos violenta, sempre foi denunciada pelo poeta Armando. “Números anônimos”, publicado em 1994, atesta isso com a precisão de um lápis apontadíssimo nas mãos do poeta.


Assim como Carlos Drummond enfrentou seu passado em Itabira, João Cabral vasculhou o seu Nordeste, especificamente sua Recife, Armando desenhou com palavras curvas, belas e violentas a cidade maravilhosa. Talvez seja o poeta contemporâneo que tenha a cidade como um dos temas cruciais na sua obra. Numa síntese muito simplificada, poder-se-ia dizer que a cidade está no poeta e o poeta está na cidade. Seu livro mais recente, “Só prosa”(2022), dedicado à prosa, mas onde aqui e ali se pressente presente a poesia, é mais do que uma autobiografia. Nele está o testemunho da formação de um poeta que não está só prosa: a poesia não ficará zangada, como escreveu o poeta na orelha deste belo
e corajoso livro-depoimento.


Tenho o privilégio de estar presente no seu convívio; ainda que raras vezes, em todas sou profundamente tocado. Numa delas pude presenciar uma cena inesquecível, de que talvez só um poeta que não teme nem esconde a sua admiração por outro poeta, abrindo-se em gesto livre – como é o caso de Armando por Drummond –, seria capaz. Estava eu andando com Armando por Belo Horizonte, meio que mostrando a cidade para ele e, sem avisá-lo, conduzindo-o às estátuas de Drummond e Pedro Nava, na pracinha Professor Alberto Deodato, na rua Goiás, esquina com a rua da Bahia.

 




Ao avistá-las, surpreso e atraído como uma criança, disse: “olhe ele ali, Mário”, e logo esticou as passadas, lascando um beijo na testa de Drummond, para depois cumprimentar Pedro Nava. Nunca mais esqueci essa cena. E se a conto aqui, é para compartilhar o afeto que tão raras vezes a poesia pode proporcionar. Que me perdoem o pronome aqui, mas Armando é meu poeta. Não me canso de aprender com ele e com a sua poesia.


Numa outra vinda dele a Belo Horizonte, também pude estar presente. Caminhávamos pela praça da Liberdade e ele comentou do perfume silvestre que tinha a praça. Talvez só ele percebesse, já que era um homem vindo do mar do Rio de Janeiro. Chegando à praça da Savassi, Armando disse que tinha trazido uma coisa especial para me mostrar, e logo sacou uma folha bem dobrada do bolso da camisa. Era uma carta, nada mais nada menos, do nosso maior crítico literário: Antonio Candido. Eu, na minha inocência, logo disse que ele poderia perder esta carta, pois não me passou pela cabeça que ele poderia ter feito uma cópia. O que, aliás, importa neste relato, pois, na hora e ainda agora, era, para mim, o original. Armando a leu, me deixou pegá-la, eu a li. Dois bobos ali parados em pé admirando a letra do professor Antonio Candido. Não sei quantas pessoas já tinham visto a carta, e também isso não importa, pois me senti ainda mais privilegiado por vê-la aos olhos do Armando. Mesmo que houvesse alguma restrição, estava ali o poeta comovido com a carta vinda de São Paulo para o Rio de Janeiro e trazida àquela tarde para Belo Horizonte.

 

São esses gestos que fazem dos poetas a sua grandeza. Obrigado por tudo, Armando, meu poeta carioca. Parabéns pelos seus 84 anos! Viva o poeta!


Belo Horizonte, 4 de fevereiro, domingo, 2024.


Mário Alex Rosa

 

 

SEM CESSAR

 

ALÍCIA DUARTE PENNA
ESPECIAL PARA O EM

Quando comecei a trocar correspondência com Armando Freitas Filho, ele já preferia não viajar, o que lhe custava mais ante a urgência sua em não parar de escrever. Logo, passei a ir ao Rio de Janeiro onde ele fica, num ritual mais demarcador de viradas do que qualquer outro, do que todos, e interrompido somente quando também daqui não pude arredar pé ou quando, durante a fase agudizada da pandemia, todos perdemos o pé.


Contando, estamos a dezessete anos do início dessa troca, impulsionada por um amigo e leitor, admirador comum, numa visita a ele no Edifício Panorama em Belo Horizonte. Juntos, íamos tirando, de “Máquina de escrever”(poesia reunida e revista desde “Palavra”até “Fio terra”, e com “Numeral/Nominal”), se não pombas ou coelhos brancos, lenços coloridos tão atados e intermitentes quanto pode ser a poesia saída das mãos e máquina de um severo, veríssimo homem.


Na ponta um lenço, este poema de “Numeral/Nominal”


Único


Depois que os pais passaram
a paisagem é recortada rente
nas costas, e não se pode dar
passo atrás, pois não há mais
pátio, casa, quintal, chão.
Em abismo, só o espaço que já
ambientou imagens com os significados
implícitos na enumeração acima.
Cenas e cenários foram retirados
furtivamente – dia sim
dia não, mais dia, menos dia –
e quem fica, deslocado, sem pano
de fundo e continuidade, fica
só, contra o fundo infinito.


Jamais poderia imaginar que, depois de Drummond, outro “Deus”(assim Armando nomeia Drummond) inscrevesse mandamentos numa pedra, esta, incontornável embora, carioca. Cada livro seu, desde “Máquina de escrever” (“Raro mar”, 2006; “Lar,”, 2009; “Dever”, 2013; “Rol”, 2016; “Arremate”, 2020; “Só prosa”, 2022), aguardo como a um primeiro, com uma fome terrível e inédita de algo que só ele sabe o que é, e escreve, publica.

 

A essa altura dos seus 84 anos (meus 62), não sei se Armando é um pai torto, mestre feroz bem acima ou detrás de qualquer poema que se possa fazer, embora sem imitação, ou amigo-irmão siamês a se deixar trazer, generoso e sem concessão possível, comigo. Por essa soma embaralhada de tantos anos de vida, livros, poemas, e prosa, gestos, palavras, dele, total que não se contabiliza, não se capitaliza nem perde, porque todo se distribui, não posso cessar de agradecer.

 

Ensaísta e poeta, ALÍCIA DUARTE PENNA é autora de
livros como “Espelho diário” e “origem-destino”

 

 

SENSAÇÃO DE VERTIGEM

 

ANTÔNIO SÉRGIO BUENO
ESPECIAL PARA O EM

 

O penúltimo livro de Armando Freitas Filho tem o título de “Arremate”(2020), sugerindo a ideia de acabamento, fim de alguma coisa. Trata-se mesmo do último livro de poemas publicado pelo poeta. Depois dele, apenas “Só prosa”(2023), cujo título fala por si. Sei da existência de poemas inéditos que podem compor um novo livro. Tomara que esta possibilidade em breve se concretize.


As primeiras páginas de “Arremate” merecem uma nova edição ilustrada por reproduções das telas e esculturas evocadas nos poemas. Sirvam de exemplo as marinhas de Pancetti, às quais se refere este belo símile: “O mar repetitivo como as marinhas / ininterruptas pintadas por Pancetti.” As aliterações das consoantes surdas “p” e “t” antecipam o referido caráter repetitivo tanto do mar como das marinhas. Mas essa repetição é matizada nestes versos: “Parecem uma só (marinha), mas vistas de perto / os matizes as diferenciam”(p.28). O matiz é a suprema delicadeza da Arte.


O poema “Amor”(p.167) fala do desejo (certamente erótico) dos mais velhos, que renasce na contemplação do desejo dos mais novos. Na terceira estrofe está uma das palavras que mais amo na língua portuguesa: “véspera”. A força da véspera vem de seu amplo leque de possibilidades. Depois, só resta o acontecido. Este poema, certamente destinado ao filho, termina com este lindo verso: “E aí sim a manhã dele foi a manhã do mundo.”

 

Armando fala sem rodeios dos signos da velhice, como nos versos que abrem o poema “Em busca da metonímia perdida”(clara homenagem a Proust): “Cada vez mais esqueço / Me esqueço. / Vou sendo feito de lacunas.”(p.212). No mesmo diapasão, estão os versos finais de “Na velhice”: “Já estou sendo ninguém / para muita gente e para mim mesmo.”(p.228). A identificação entre o poeta e sua obra se enuncia na primeira estrofe de “Sem dúvida”: “Faltam quantas folhas afinal / para este livro cansar? / Cansará comigo ou cansarei / antes de elas cansarem?…/ O livro então sou eu.”(p.226).

 

Fiquei tentado a identificar neste livro uma espécie de “planta baixa”, talvez para escapar da sensação de vertigem ao ler os poemas de “Arremate”. Fracassei, porque Armando escapa sempre, numa espécie de desidentificação permanente, como se pode perceber nestes versos e “Tempo ao tempo”: “... num moto-contínuo que / praticamente não para / apesar da força da ilusão / em sentido contrário.”(p.154). O dizer de Armando escapa ao dito e ao contrário dele, é sempre mutante.

 

O último poema do livro, “215”, é uma indagação (e como faz perguntas este poeta), que dialoga com o verso “ganhei perdi meu dia”, de Carlos Drummond de Andrade. Vale conferir: “Venci o dia que queria / mas ao vencêlo não o estava / perdendo e me aproximando / do corte veraz do outro dia?”(p. 293).

 

Termino comovido esta leitura. Respiro fundo, agradecido a Armando Freitas Filho por me oferecer neste “Arremate”palavras que traduzem o meu próprio cansaço existencial.

 

ANTÔNIO SÉRGIO BUENO é professor aposentado da Faculdade de Letras da UFMG, autor, entre outros, de “Vísceras da memória”, sobre a obra de Pedro Nava.

 

INÉDITOS

 

Dois poemas de “Respiro”, novo livro de Armando Freitas Filho, que será publicado este ano pela Companhia das Letras.

 

“Maré ou marasmo”


Salve-me de mim
no mar, na maré de amanhã
onda por onda – crespas –
parecidas, mas no fundo
o sistema é outro
exige ao olhar – atenção – !
Se quiser descobrir, mergulhe
se não veja como se fosse igual
e o dia pode não passar
que é o que eu quero
que não quebre nada
se equilibre no marasmo
na linha dessa ilusão.
E a noite da véspera
pior como costumam ser todas
abre uma nesga de nuvem
que permite uma gota de luar.


“Reler”


Lendo como quem escreve
o lido – calcando os lápis
na folha resistente, dura
que marcam a página seguinte
parecendo o fantasma
fincado na visão em baixo
relevo, quase tátil podendo
servir feito caligrafia Braille
com a ponta dos dedos
até o fundo dos sentidos
do que ficou percebido.

 

PLAQUETA ESPECIAL


A Editora de tipografia Aerográfica, de Adriano Nascimento, publicará ainda no primeiro semestre de 2024 a plaquete especial “Só amor”, com oito poemas de Armando Freitas Filho

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