O biênio 2023/2024 marca importantes efemérides de um dos mais importantes escritores brasileiros, o alagoano Graciliano Ramos (1892-1953). São os 90 anos do lançamento do primeiro romance, “Caetés” (1933), e de “S. Bernardo” (1934) – sua primeira obra de sucesso –, os 80 anos do folclórico infantojuvenil “Histórias de Alexandre” (1944), os 70 anos do autobiográfico “Memórias do cárcere” (1933) e os 70 anos de sua morte, em 20 de março de 1953, o que deixa toda a sua obra em domínio público.
A Lei 9.610/1998 estabelece sete décadas de proteção. A partir do primeiro dia do ano subsequente à morte do autor, são extintos os direitos autorais. No caso de Graciliano Ramos, a editora Record tinha a exclusividade até 31 de dezembro de 2023.
Com a virada do ano, várias editoras já estão publicando a obra de Graciliano. A largada já foi dada com “S. Bernardo”, “Angústia” e “Vidas secas” – seus principais romances – e o infantil “Os filhos da coruja” – que Graciliano escreveu com o pseudônimo J. Calisto, em 1923, inspirado na fábula “A águia e o mocho”, de La Fontaine.
O autor alagoano teve curta carreira literária – apontada pela crítica como pertencente à segunda fase do modernismo. Foram apenas 20 anos de publicações, embora já escrevesse desde jovem para jornais. Tinha 40 anos quando publicou “Caetés” e morreu aos 60, deixando “Memórias do cárcere” sem o capítulo final – o livro foi publicado seis meses depois.
Econômico até nos adjetivos e nos sentimentos, Graciliano tem uma escrita concisa, objetiva, seca, introspectiva, sem descrição de ambientes ou de natureza. “A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer”, afirmou ele, certa vez, ao jornalista, escritor e tradutor Joel Silveira.
Sempre foi muito rigoroso com os seus livros, tanto que exagera ao longo de sua carreira ao se referir a eles como “porcaria” – um excesso, sem dúvida – o que indica controle de qualidade literária. Essa referência é encontrada várias vezes em “Memórias do cárcere” e no livro “Cartas”, que reúne suas correspondências entre 1910 – quando ainda morava em Palmeira dos Índios (AL), sua cidade adotiva –, passando pelas cartas de amor à mulher, Heloísa Ramos, e pelas escritas nos sofridos meses na prisão no Rio de Janeiro, em 1936/37.
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“Não leia essa porcaria”, conta ele em “Memórias do cárcere” ao flagrar outro detento lendo “Caetés”, seu primeiro livro, que realmente é o mais fraco, mas não uma porcaria. “S. Bernardo”, o segundo romance, também é chamado de porcaria por ele, um exagero maior ainda.
O realismo crítico explicitado em sua obra reflete sua própria vida difícil, desde a infância sem afeto em Quadrangulo, sua cidade natal, passando por Palmeira dos Índios, sob a mão pesada do pai e da mãe, e a carestia gerada por intempéries, como as secas prolongadas no Nordeste.
Essas condições adversas são reveladas em seu livro de memórias “Infância” (1945) e também em forma literária, como em “Vidas secas” (1938), sua obra mais popular sobre uma família de retirantes nordestinos.
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Humanismo
Desde cedo, Graciliano desenvolveu seu caráter íntegro e humanista, sensibilizado pela miséria sem fim do sertão e pelas injustiças sociais do país, que se acentuaram em vida no período em que esteve preso nos porões do regime opressor de Getúlio Vargas, quando viu o pior da raça humana. Não à toa, sua obra contém realismo social ou crítico, confundido erroneamente como pessimismo.
Um livro recém-lançado revela a vida do escritor como homem público: “Graciliano: romancista, homem público, antirracista”, do pesquisador Edilson Dias de Moura. A obra tem origem na pesquisa de doutoramento de Moura, que, ao relacionar análise literária, consulta documental e história, chegou a um estudo inédito sobre como a vida pública de Graciliano influenciou seus romances.
Moura conta que como diretor de Instrução Pública de Alagoas – cargo equivalente ao de secretário de Estado de Educação – Graciliano desenvolveu ações para acesso de crianças negras, profissionalização do magistério, distribuição de merenda e promoção de professoras negras a cargos escolares diretivos, por exemplo.
Essa política progressista culminou com seu afastamento do cargo por ter desagradado a setores conservadores. As desigualdades sociais, aponta Moura, e a problemática da educação no país surgem com frequência na literatura de Graciliano.
Esta edição especial do Pensar apresenta ensaios sobre o conjunto de sua obra e resenhas e artigos sobre os principais livros. Traz ainda entrevista com o professor Wander Melo Miranda, especialista na escrita do autor.
“Os romances e os livros de memórias de Graciliano ao mesmo tempo em que contam uma história refletem sobre ela, sobre como é construída – está aí um dos traços da sua modernidade. O escritor é leitor de si. Seus narradores em primeira pessoa não apenas escrevem, mas perguntam o tempo todo o que é escrever, como se escreve e por quê. Seus leitores e leitoras acabam, assim, participando do processo de construção do texto, são parceiros na sua realização”, explica Melo Miranda.
OBRAS
• “Caetés” (1933)
• “S. Bernardo” (1934)
• “Angústia” (1936)
• “Vidas secas” (1938)
• “A terra dos meninos pelados” (1939)
• “Brandão entre o mar e o amor” (1942)
• “Histórias de Alexandre” (1944)
• “Infância” (1945)
• “Dois dedos” (1945)
• “Histórias incompletas” (1946)
• “Insônia” (1947)
• “Memórias do cárcere” (1953)
• “Viagem” (1954)
• “Linhas tortas” (1962)
• “Viventes das Alagoas” (1962)
• “Alexandre e outras histórias” (1962)
• “Cartas” (1980)
• “O estribo de prata” (1984)
• “Cartas de amor a Heloísa” (1992)
• “Garranchos” (2012)
• “Minsk” (2013)
• “Cangaços” (2014)
• “Luciana” (2015)
Existência amarga
“A cachorra Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pelo caíra-lhe em vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida. Por isso Fabiano imaginava que ela estivesse com um princípio de hidrofobia e amarra-lhe no pescoço um rosário de sabugos de milho queimados. Mas Baleia, sempre de mal a pior, roçava-se nas estacas do curral ou metia-se no mato, impaciente, enxotava os mosquitos, sacudindo as orelhas murchas, agitando a cauda pelada e curta, grossa na base, cheia de roscas, semelhante a uma cauda de cascavel.
Então, Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de pederneira, lixou-a, limpou-a com o seu saca-trapo e fez tenção de carregá-la bem para a cachorra não sofrer muito. Sinha Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assustados, que adivinhavam desgraça e não se cansavam de repetir a mesma pergunta: – Vão bulir com a Baleia?” (…) Baleia queria dormir. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As criança se espojariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.”
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O triste fim da cadelinha Baleia – que originalmente era um conto – e o sofrido destino da família do vaqueiro Fabiano emocionam leitores há 86 anos, desde março de 1938, quando Graciliano Ramos lançou “Vidas secas”, uma das mais importantes obras da literatura brasileira, porque reúne uma realidade regional – representada pelo sertão indomável e arrasado pela seca do Nordeste brasileiro – e uma universal – representada pelo mundo excludente das injustiças sociais. Ambas se encontram sob opressão física, psicológica e moral, não há escapatória.
“Vidas secas”, que como toda a obra de Graciliano entrou em domínio público em 2024, acaba de ganhar nova edição, agora pelo selo Penguin (Companhia das Letras). “A leitura do capítulo Baleia, ainda mais se vinculado ao todo do romance, deixa ver como a universalidade e a permanência de uma obra de arte se constroem de uma forma que, fincada em uma situação local e atenta ao fator econômico, é capaz de provocar comoção, consciência quanto às incrongruências da realidade e olhar crítico contra injustiças sociais”, analisa a crítica literária Ieda Lebensztayn no posfácio da edição.
Ela cita uma carta de Graciliano ao amigo e tradutor argentino Benjamin de Garay. “O meu bárbaro pensamento é este: um homem, uma mulher, dois meninos e um cachorro, dentro de uma cozinha, podem representar muito bem a humanidade. E ficarei nisto, enquanto não me provarem que os arranha-céus têm alma”, escreveu Graciliano.
Esses mundos mesclados, micro e macro, estão presentes nos romances anteriores de Graciliano, em maior ou menor grau, na vida sem graça de João Valério (“Caetés”), com ênfase na relação conturbada de Paulo Honório com a mulher e os seus empregados (“S. Bernardo) e também na trajetória do atormentado Luís da Silva (“Angústia”). Mas em “Vidas secas” o realismo é explícito, os sentimentos estão à flor da pele, não mais enrustidos, é a obra mais humana/desumana, a mais comovente de Graciliano, que dá voz à cachorra Baleia. A dor de Baleia é a dor da família, é a dor do mundo.
Melhores qualidades
Na definição de crítico literário Álvaro Lins (1912-1870), “o mais brasileiro dos livros de Graciliano Ramos é sem dúvida 'Vidas secas'. “Revelaram-se nesta obra algumas das melhores qualidade do seu autor, ausentes no que escrevera antes.
Em 'S. Bernardo' e 'Angústia', a sua atitude humana era quase de sarcasmo e revolta egoísta. Em 'Vidas secas', ele se mostra mais humano, sentimental e compreensivo”, analisa Lins no prefácio da edição de 1970 (Livraria Martins Editora). Pela primeira vez, Graciliano se identifica com os seus personagens numa história contada não mais na primeira pessoa, como nas três anteriores, afirma Lins também.
Antonio Candido (1918-2017), o maior crítico literário brasileiro, diz em seu ensaio “Ficção e confissão”: “Parece que fatigado da esterilidade de Paulo Honório e do niilismo corruptor de Luís da Silva, Graciliano quis oferecer da vida uma visão, sombria, é verdade, mas não obstante limpa e humana. Fabiano é esmagado pelos homens e pela natureza, mas o seu íntimo de primitivo é puro. Paulo Honório e Luís da Silva pensam, logo existem. Fabiano existe, simplesmente”.