"Infância": ilustração de Darcy Penteado - edição de 1969 - Livraria Martins Editora

crédito: ilustração de Darcy Penteado

“O menino é o pai do homem”, diz Fernando Sabino (1923-2004) na epígrafe “O menino no espelho”, livro de memórias de sua infância em Belo Horizonte. O escritor mineiro parodia o verso do poeta inglês William Wordsworth (1770-1850) – “The child is father of the man (“A criança é pai do homem”) – também lembrado por Sigmund Freud (1856-1939) no texto “O interesse científico da psicanálise (1913). Por trás dessa relação criança-homem está a constatação de que comportamentos e hábitos da infância moldam a vida adulta de todas pessoas, para o bem e/ou para o mal.


O escritor alagoano Graciliano Ramos (1892-1953) não faz referência ao verso de Wordsworth, ao aforismo de Freud nem à epígrafe de Sabino, em “Infância” (1945), seu livro de reminiscências em Alagoas. Mas lendo seus livros de ficção e análises sobre sua obra feitas, por exemplo, pelo escritor e jornalista Octávio de Faria (1908-1980) e pelo crítico literário Álvaro Lins (1912-1970), é notória também como uma infância triste, sob surras, sem afeto de pai e mãe, influenciou os personagens de Graciliano e se transformou numa espécie de libertação.


“No mundo infantil de Graciliano Ramos a injustiça se erguia no horror dessa divisão: de um lado, crianças submissas e maltratadas; do outro lado, adultos cruéis e despóticos. Pais, mães, mestres, todos os adultos pareciam dotados da missão particular de oprimir as crianças. Um mundo intolerável de castigos, privações e vergonhas”, cita Álvaro Lins no prefácio de “Vidas secas” (Livraria Martins Editora – 1970). “As minhas primeiras relações com a justiça foram dolorosas e deixaram funda impressão”, afirma Graciliano em “Infância”, ao contar uma surra traumática que levou do pai, um juiz substituto, que achou que ele era o responsável pelo sumiço de um cinturão no qual nem sequer tinha tocado. E quando encontrou o cinturão, o pai não desconsiderou a surra, o que aumentou a dor do menino.


Por este e outros episódios da infância do escritor alagoano, Álvaro Lins explica os personagens amargurados, angustiados e desajustados das obras de Graciliano, com dificuldade para manifestar e receber afeto, como “João Valério” em Caetés, Paulo Honório em “S. Bernardo” e Luís da Silva em “Angústia”, os três primeiros romances do escritor alagoano.

 


Octávio de Faria vai na mesma linha no posfácio de “Infância” (editora Record – 1986): “Desde os mais negros pensamentos de Luís da Silva de 'Angústia', até o painel de 'Vidas secas', desde a mesquinhez do ambiente da cidadezinha de 'Caetés' ou da fazenda de Paulo Honório em 'S. Bernardo', até a máxima de recordações ainda úmidas de sofrimento de 'Infância', é sempre o mesmo quadro cinzento e triste, quase asfixiante disseminado em toda a sua obra. E até mesmo em depoimentos de “Histórias de Alexandre”, vamos deparar com esse mesmo estado de espírito e ceticismo que faz o bom e digno Alexandre dizer ao amigo Firmino, ora num tom, ora noutro, a mesma conclusão: 'Tudo neste mundo é canoa furada'”.


Faria não acredita que essa postura seja simples pessimismo. “Para Graciliano Ramos não se tratava senão de dar testemunho da verdade – da verdade humana – da realidade que estava gravada nele desde menino, de reproduzir o mundo que vira, que era ele próprio, corpo e alma de sua existência”. Entretanto, a infância infeliz e sua representação psicológica nos personagens de Graciliano levaram à libertação do adulto, como um catarse, segundo Octávio de Faria e Álvaro Lins. “Libertação de um homem que se evade de um mundo que detesta”, afirma Lins.

 

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É essencial destacar também que, apesar dos dissabores na infância e na vida adulta – como os dez meses em que esteve injustamente na prisão – Graciliano Ramos não manifestou ódio ou desejo de vingança em nenhum momento de suas obras memorialísticas – “Infância” e “Memórias do cárcere” –, seja dos pais, seja do governo de Getúlio Vargas que o prendeu, ambos pela violência física e psicológica. Podemos dizer, talvez, que todo esse sofrimento foi sublimado pela libertação existencial de Graciliano através de suas obras profundamente reflexivas. Para sorte da literatura e dos seus leitores.


Um leitor voraz


Em “Infância”, Graciliano Ramos também revela desde cedo sua “fome” por literatura e a importância da leitura em sua formação pessoal e escolar, e ainda a falta de dinheiro e acesso para satisfazer essas necessidade.

 

“Apareceu uma dificuldade, insolúvel durante meses. Como adquirir livros? (…) Eu precisava ler, não os compêndios escolares, insossos, mas aventuras, justiça, amor, vinganças, coisas até então desconhecidas. Em falta disso, agarrava-me a jornais e almanaques, decifrava as efemérides e as anedotas das folhinhas. Esses retalhos me excitavam o desejo, que se ia transformando em ideia fixa. Queria isolar-me, como fiz quando nos mudamos em razão de consertos na casa. (…) A pretexto de ver os trabalhos, escapulia-me com o romance debaixo do paletó, voltava, desviava-me dos pedreiros, serventes e pintores, ia esconder-me na sala. Mergulhava numa espreguiçadeira e, empoeirado, sujo de cal, sentindo o cheiro das tintas, passava horas adivinhando a narrativa, à luz que coava pelos vidros baços. E onde conseguir livros?”

 

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A “salvação” veio da biblioteca do tabelião Jerônimo Barreto. “Diariamente, percorrendo a Ladeira da Matriz, demorava-me em frente do cartório dele, enfiava os olhos famintos pela janela, via numa estante, em fileiras densas, bonitas encadernações de cores vivas”. O menino Graciliano conseguiu, com “inexplicável desaparição da timidez, quase a desaparição de mim mesmo”, bater à porta do tabelião para pedir um livro emprestado. “Jerônimo abriu a estante, entregou-me sorrindo 'O Guarani' [de José de Alencar], convidou-me a voltar, franqueou-me as coleções todas”, lembra o escritor.


“Em poucos meses li a biblioteca de Jerônimo Barreto. Mudei hábitos e linguagens. Minha mãe notou as modificações com impaciência (…) A única pessoa real e próxima era Jerônimo Barreto, que me fornecia a provisão de sonhos, me falava na poesia de Ajácio, no trono de S. Luís, em Robespierre, em Marat”.

 

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