Gabriel García Márquez -  (crédito: Ilustração)

Gabriel García Márquez

crédito: Ilustração

“O agitar de asas de borboletas dentro do peito tornou-se insuportável só de pensar em ter o homem da sua vida até o amanhecer”. Esta é a pitada de realismo mágico ou a senha para Ana Magdalena Bach, que tem 46 anos, um casamento bem-sucedido com um maestro e um casal de filhos já quase adultos, ir à procura de um amante todos os anos, no dia 16 de agosto, aproveitando a visita ao túmulo da mãe numa ilha do Caribe.

 

Ela é a protagonista de “Em agosto nos vemos” (“En agosto nos vemos” – editora Record), a segunda obra póstuma do escritor colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), prêmio Nobel de Literatura em 1982, que está sendo lançada mundialmente hoje pelos seus dois filhos – Rodrigo e Gonzalo, no dia em que ele completaria 97 anos.

 

Como Graciela Jaraiz de la Vera, a protagonista da primeira obra póstuma – “Diatribe de amor contra um homem sentado”, única peça teatral do escritor, escrita em 1987 e lançada em 2022 –, Ana Magdalena Bach também passa por cima do patriarcado e do machismo, busca independência do jugo masculino.

 

Ana usa a mesma arma dos homens: a infidelidade. Como Graciela, representa um desfecho de libertação para as mulheres na escrita do autor colombiano, desde a notável matriarca Úrsula Iguarán – uma das maiores personagens femininas da literatura mundial – e Remédios, a Bela, que ascendeu aos céus, em “Cem anos de solidão”, passando por Mamãe Grande, a outra matriarca de Macondo, por Cândida Erêndira – a mais sofrida –, pela prostituta Maria dos Prazeres e por Fermina Daza, prisioneira do casamento em “O amor nos tempos do cólera”.

 

 

Coincidentemente, “Em agosto nos vemos” está sendo lançado às vésperas do Dia Internacional da Mulher, 8 de março, e, portanto, não deixa de ser uma homenagem, mesmo não pensada como tal. As personagens femininas de García Márquez, mesmo as mais fortes, estão sufocadas pela opressão ou encobertas pelo véu do realismo mágico. Mas Graciela e Ana Magdalena tornam-se donas dos seus destinos, são mulheres atualíssimas que enfrentam os homens e sem prescindir deles, sabem como lidar.

 

Gabo, intencionalmente ou não, teve sua longa carreira literária concluída com essas duas mulheres, que também não abrem mão do prazer e do amor. “O certo é que a felicidade não é como dizem, que só dura um instante, e a gente só fica sabendo que teve quando ela já se acabou. A verdade é que ela dura enquanto dura o amor, porque com o amor até morrer é bom”, desabafa Graciela no palco em seu monólogo diante da traição do marido, representado por um boneco numa cadeira.

 

“Nada se parece tanto com o inferno como um casamento feliz!”. Essas reflexões de Graciela em “Diatribe...” são o seu grande elo com Ana Magdalena, que também é feliz no casamento, mas quer algo mais. E ainda duvida do marido, tanto que passa a pressioná-lo para que confesse se já teve amantes durante o casamento. E ele acaba confessando.


Demência

 

“Em agosto nos vemos” é o livro derradeiro de Gabo, que teve dificuldades de concluí-lo ao longo da primeira década deste século, depois de muitas versões, devido à perda gradual da memória, já acima dos 80 anos, por causa da demência que o desesperou, como conta o editor Cristobal Pera no posfácio do livro. Rodrigo García também lembra esse drama. “Trabalho com a minha memória. A memória é minha ferramenta e minha matéria-prima. Não consigo trabalhar sem ela, me ajudem”, afirmou Gabo ao filho, conforme narrado no livro “Gabo & Mercedes – Uma despedida” (2002).

 

O último livro de Gabo tem problemas, como admitem os filhos no prefácio (“Não está tão lapidado como seus maiores livros. Tem alguns tropeços e pequenas contradições), como também deve perceber o leitor mais atento do escritor, diante de descrições repetitivas de personagens e de falta de acabamento na construção linguística. É um livro esteticamente inacabado. Mas é García Márquez, o que já basta para ser lido.

 

À primeira vista, “Em agosto nos vemos” parece um best-seller erótico que poderia passar batido se fosse escrito por um autor qualquer, inclusive com descrição detalhada do órgão sexual masculino – fato inédito e surpreendente na obra do autor – também chamado de “animal” (como Gabo já havia feito no conto “O rastro do teu sangue na neve” no livro “Doze contos peregrinos” (1992): “Billy Sanches cumpriu então seu ritual pueril: baixou a cueca de leopardo e mostrou-lhe seu respeitável animal erguido”).

 

Mesmo feliz no casamento, Ana Magdalena se cansa da rotina e precisa ter seus amantes apenas por prazer, nada de amor ou paixão. A narrativa convencional, entretanto, logo dá a primeira pista do traço de Gabo: “Com as primeiras ondas de calor de julho, começou dentro de seu peito um bater de asas de borboletas que não daria trégua até que ela voltasse para a ilha”. As borboletas de Ana Magdalena têm ligação direta com as borboletas amarelas de “Cem anos de solidão”, obra-prima recheada de realismo mágico: “As borboletas amarelas invadiam a casa desde o entardecer”.

 

Assim, uma vez por ano Ana Magdalena vai para a ilha, sempre com um livro na bolsa, visita o túmulo da mãe e se hospeda em hotéis à procura de um amante. García Márquez faz muitas citações literárias, um tanto quanto esdrúxulas, como “Drácula”, de Bram Stoker, e a ficção científica “Crônicas marcianas”, de Ray Bradbury, que soam inadequadas para a narrativa, embora um dos amantes de Ana seja um “vampiro”.

 

O escritor faz também muitas referências a músicas clássicas, uma de suas paixões, recorrentes nas noitadas de Ana Magdalena Bach, que não por acaso, com a diferença de apenas uma letra, é homônima da segunda esposa do compositor alemão Johann Sebastian Bach, chamada Anna Magdalena Bach. Entre idas e vindas em busca de amantes, a protagonista se depara com uma surpresa numa das visitas à ilha que vai mudar sua vida novamente.

 

“EM AGOSTO NOS VEMOS”
Gabriel García Márquez
Tradução Eric Nepomuceno
Editora Record
132 páginas
R$ 59,90

 

Trecho do livro

 

“Depois de uma longa hora de sussurros banais, começou a explorá-lo com os dedos, muito devagar, do peito até o baixo-ventre. Continuou com o tato de seus pés ao longo das pernas e comprovou que ele inteiro era coberto por uma penugem espessa e suave feito musgo em abril. Depois tornou a buscar com os dedos o animal em repouso, que encontrou desanimado, porém vivo. Ele tornou tudo mais fácil mudando de posição. Ela o reconheceu com a ponta dos dedos: o tamanho, a forma, o pequeno freio, a glande sedosa, arrematada por uma dobrinha que parecia costurada com agulha de enfardadeira. Contou os pontos tateando, e ele se apressou a esclarecer o que ela havia imaginado: Fui circuncidado já adulto. - E acrescentou com um suspiro: - Foi um prazer muito estranho. - Até que enfim - disse ela sem clemência - algo que não foi uma honra. Ela se apressou em atacá-lo com beijos suaves na orelha, no pescoço, ele a procurou com os lábios e os dois se beijaram na boca pela primeira vez. Ela tornou a procurá-lo e o encontrou armado. Quis assaltá-lo de novo, mas ele se revelou um amante sofisticado que a levou sem pressa até o ponto de ebulição”.

 

Capa do livro

Capa do livro

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