Schneider Carpeggiani
Especial para o EM
Tomo emprestado, e bagunço, o título de um dos poemas mais famosos de Carlos Drummond de Andrade, “Congresso internacional do medo”, para formalizar uma ideia que ajuda a entender algumas das grandes obras literárias latino-americanas das últimas décadas.
Penso numa espécie de “Congresso latino-americano do medo”, em que são temidos os ditadores e os seus fantasmas, o coração delator do agente duplo, a peste insepulta do fascismo, o feminicídio e a homofobia, os lugares vazios deixados pelos desaparecidos e, mais recentemente, o desequilíbrio ecológico, como encontramos em contos de “Gótico nordestino”, de Cristhiano Aguiar, e no romance “Gosma rosa”, da uruguaia Fernanda Trías. Continuamos temendo a morte, claro.
No entanto, estou me referindo a tudo o que possa simbolizá-la e antecipá-la, em nosso selvagem contexto neoliberal.
O medo, o terror e os seus sentimentos vizinhos têm ajudado a renovar os clichês do realismo mágico latino-americano. Os arrepios de pavor justificam rasurar qualquer fronteira entre o cotidiano e o fantástico. Não é exagero ou invenção; é apenas como se vive por aqui, dizem. O medo, claro, não é novidade alguma.
Mas, para o sentimento a que estou me referindo, talvez exista um demarcador temporal. No conto “O Olho Silva”, o escritor chileno Roberto Bolaño, por exemplo, coloca uma espécie de ponto de partida nele, ao falar de uma sombra de violência, que “não se pode escapar, pelo menos não nós, os nascidos na América Latina na década de cinquenta, os que rondávamos os vinte anos quando morreu Salvador Allende”.A partir dessa temporalidade, cada autor retrataria o medo como bem entende. Ou sente.
A escritora argentina Samanta Schweblin coloca o sentimento como protagonista já nos primeiros momentos dos seus textos. Não há preparação ou construção de clima: somos lançados num abismo de mal-estar, logo nas linhas iniciais.
É assim em sua novela sobre espiões como ursinhos de pelúcia, “Kentukis”, em que a personagem e nós, os seus leitores, somos avisados e ameaçados de cara: “Se você quiser sobreviver em South Bend, Robin as tinha ouvido dizer certa vez, melhor ficar amiga das fortes”.
No seu conto “Nada disso tudo”, mãe e filha invadem casas em busca de algo perdido e que precisa ser enterrado, resolvido e, só assim, recuperado. Na frase de abertura da história, a mãe sentencia: “Estamos perdidas”. Trata-se de outro caso de latino-americanos perdidos na América Latina. A relação familiar como catapulta do horror reencontramos no romance de estreia de Schweblin, “Distância de resgate”, de 2014,que ganha nova edição agora pela Fósforo Editora, com tradução de Joca Reiners Terron.
O conto “Nada disso tudo”, presente em “Sete casas vazias”, é uma obra-prima quase perdida. Publicado um ano depois de “Distância de resgate”, ele parece colocar uma lente de aumento em questões que a novela já apresentava e que se mostram centrais para entendermos a literatura de Schweblin.
São universos, por exemplo, onde os homens adultos estão ausentes ou mesmo jamais serão protagonistas. Eles estão ali, apenas ao lado. As mulheres e as crianças precisam lidar frontalmente com o pavor (Lembro o poema “As mulheres e as crianças são as primeiras que desistem de afundar navios”, de Ana Cristina César). E, em determinado momento de “Distância”, ouvimos um personagem dizer “Enterrar não é matar”. Repito: enterrar é recuperar, é resolver. Ainda que não se recupere, que nunca se resolva.
Entramos em “Distância de resgate”, romance formado por um longo diálogo, com algo já rompido na trama. Somos expostos às seguintes frases, que tentam formar uma ordem lógica, que nunca se completa: “SÃO COMO VERMES”, “Que tipo de vermes”, “Como vermes, em todos os lugares”. Trata-se de uma epidemia já deflagrada, em que todos parecem já derrotados.
Mas o que teria causado o surgimento desses vermes, quais são seus sintomas e, mais importante, qual o propósito da doença? As respostas não chegam, enquanto o tempo de Amanda, que passa as férias com a filha Nina, numa comunidade rural da Argentina, vai acabando, após ser contaminada. Sua (possível) chance de cura está na conversa com o filho de Carla, sua vizinha nessa temporada.
O garoto David conseguiu se salvar da peste por conta de um ritual mágico, que teria quebrado sua alma, sua essência. É ele que está ali, mas possivelmente também um outro. O medo não nos permite distinguir. E Carla vive apavorada com o que teria ficado no lugar do filho.
Como uma Sherazade já derrotada, Amanda conta sua história a David, para encontrar algum tipo de salvação final. Mas suas lembranças vão e voltam, sem chegar ao que o garoto acredita ser o importante para a narrativa. É que o medo não deixa focar. Quem tem medo, ainda que queira desesperadamente, não fixa o olhar, não se concentra.
Ou como diz a mãe de David: “É que as vezes nem todos os olhos são suficientes”. Várias das leituras já realizadas sobre “Distância de resgate” apontam a maestria do romance em tratar das questões disruptivas entre campo e cidade. E, também, do desequilíbrio ecológico, que teria transformado as novas doenças nas formas contemporâneas de assassinato político.
Assim como nas ditaduras, o corpo, mais uma vez, é o alvo. As torturas de antes agora são os sintomas fulminantes de uma praga, que se alastra pelo ar, por todo lugar. “E agora tem mais alguma coisa no meu corpo, algo que ficou ativo de novo ou que talvez tenha se desativado, algo agudo e brilhante”, discorre Amanda, tentando encontrar alguma razão lógica para sua tragédia.
Sem conclusões fáceis (lembre-se: no realismo mágico não se explica, teme-se apenas) e com uma arquitetura ambiciosa, “Distância de resgate” é uma obra importante para pensarmos hoje a América Latina, onde os desmandos políticos se travestem num temor que se acredita irracional e atávico. Sim, precisamos cada vez mais frequentar e enfrentar esse “congresso latino-americano do medo” para um dia, quem sabe, dissolvê-lo.
“Distância de resgate”
De Samanta Schweblin
Tradução de Joca Reiners Terron
Fósforo
96 páginas
R$ 64,90