Ariana Harwicz -  (crédito:  LUIS MIGUEL/divulgação)

Ariana Harwicz

crédito: LUIS MIGUEL/divulgação

 

“Se este livro tem algum sentido, é o de afirmar a necessidade do paradoxo”, avisa Ariana Harwicz na abertura de “O ruído de uma época: aforismos, correspondências e ensaios” (Instante). “Não estou sendo nada original, o paradoxo é ir contra a opinião geral, contra a lógica, é celebrar a contradição. Qualquer pensador, qualquer crítico, qualquer artista afirmava (antes) sua retórica e sua poética na desobediência. Ou seja, na resistência a pensar de uma única maneira. Pensar é pôr em tensão, ao mesmo tempo, duas coisas opostas”, lembra a escritora argentina, antes da advertência: “No entanto, por alguma razão que não consigo compreender, nos últimos tempos a necessidade de desobedecer enfraqueceu; em geral, ninguém parece se importar muito com a cultura da intimidação na arte. Parecem até gostar dela, contanto que não haja muito sangue.”


Desafinar o coro dos contentes é um dos objetivos de Ariana Harwicz no sexto livro. Nascida em 1977 em Buenos Aires, e radicada no interior da França desde 2007, ela escreveu os romances “Morra, amor” (2012, em adaptação para o cinema nos EUA pela produtora de Martin Scorsese), “A débil mental” (2014), “Precoce “(2015), integrantes de uma trilogia nada edificante sobre maternidade e paixão, “Degenerado” (2019) e “Perder el juicio” (ainda não lançado no Brasil). Escreveu também “Desertar” (2021), com o escritor francês Mikaël Gómez, reunindo reflexões sobre literatura, tradução e deserção da língua materna Guthart.


Dividido em três partes, “O ruído de uma época” traz inquietações, reflexões e provocações da escritora. As discussões literárias surgidas a partir da biografia e dos posicionamentos públicos dos autores são um dos temas que mais despertam reações incisivas de Harwicz. “No século XXI, foi reaberto um debate, o qual parecia ter sido resolvido, em favor da separação do autor de sua obra. O revisionismo começou nos Estados Unidos e foi se replicando, de maneira acrítica, submissa e colonizada, na América Latina e na Europa. Não separar a vida do autor de sua obra é uma catástrofe para qualquer criador”, acredita.

 

 

“Examina-se sua vida conjugal, seu currículo, seu histórico criminal, sua casa, se foi infiel, se paga os impostos, como se tudo isso fizesse parte do texto ficcional. Nesse contexto, eu anunciaria o fim da arte. Se Deus morreu, a arte também pode morrer tranquilamente”, conclui.


Entre citações de escritores como Thomas Bernhard e Imre Kertész e a escolha de “A cabeça de obsidiana”, de André Malraux, para livro de cabeceira, ela explica a origem do título: “O ruído de uma época” define o relato que os mortos fazem aos vivos e os mortos aos mortos, de túmulo em túmulo, de livro em livro.

 

E define seus poetas, seus músicos. Harwicz dá pistas sobre a origem de alguns de seus romances, lançados no Brasil também pela Instante. “De onde vem a infância morbidamente sexual em ‘A débil mental’, de onde vem a puberdade infectada pelo erotismo adulto em ‘Precoce’, de onde vem o vício, a depressão, aquele corpo atacado em ‘Morra, amor’? Vêm da música das infâncias e adolescências que nos fizeram viver ou que vivemos involuntariamente. Vêm daqueles abusos velados, quando não tínhamos palavras para entender”, responde no livro.


Reflexões de Ariana Harwicz

 

Palavras não mentem

 

“Pode-se adotar uma pose em tudo: fazer livros falsos, filiar-se cinicamente a uma ideologia contrária, mostrar-se progressista e ser de direita, fingir ser má ou boa mãe, ser moderno quando se detesta a modernidade etc. O que não se pode fazer é mentir na língua, as palavras que escolhemos não mentem, ali toda a verdade aparece.”



 

Escrever é viver duas vezes

 

“Escrever é se subtrair à vida. Mas, para escrever, é preciso viver. Agora percebo até que ponto primeiro é preciso se lançar à vida, esquecendo a escrita, para depois começar a escrever, esquecendo a vida. Escrever é, antes de tudo, uma operação temporal, como a música. Escrever é mais do que viver, é viver duas vezes. Ou é menos do que a vida, é uma relação especular, oblíqua, distorcida. É por isso que às vezes um texto nos faz chorar. Mas o mérito da emoção não é literário, o mérito é todo da vida. E vice-versa.”

 

 

Redução à condição genital

“Há uma reconversão forçada na literatura: uma inquisição. Está se reescrevendo a literatura infantil e também a história, uma revanche em que opera uma instrumentalização das minorias. Marguerite Duras é mostrada como uma mulher oprimida quando não o foi, já que ela mesma disse que não era feminista e não acreditava em rótulos, assim como Yourcenar. E, ainda assim, Duras foi uma mulher crucial em sua época. Trocaram o nome de George Sand por seu nome feminino de nascimento, Amandine-Aurore-Lucile Dupin, mas George Sand decidiu ser do terceiro sexo, nem homem, nem exclusivamente mulher, como Flaubert a chamou. Isso é ir contra a vontade do autor. Procuram-se tradutores afrodescendentes para traduzir autores afrodescendentes, não binários para traduzir não binários. Essa redução do ser humano à sua condição genital, biológica, de identidade de gênero, sexual ou à sua cor da pele é típica do fascismo. É uma classificação da qual se fugiu com horror no século XX e que hoje estamos, com a ajuda de colaboradores, retomando na arte. Esvaziar a linguagem de violência é impossível.”

 

 

Reunião e desvalorização

 

“Quando jornalistas, mediadores e editores de qualquer festival e encontro literário de diversos países enfatizam que somos “escritoras mulheres + nascidas nos anos 1970 + latino-americanas”, o que buscam é nos alienar. Somos reunidas sob um mesmo lema, uma associação, uma condição, uma cota: o combo de sermos mulheres, da mesma geração e latinas. Isso pode parecer uma política de apoio, visibilidade, inclusão e justiça diante de séculos de apagamento da mulher em todas as áreas, e a princípio pode ter sido assim. Hoje acredito que esse discurso, onipresente e totalizante, é contrário à valorização de uma língua, de uma obra, de um universo ficcional. A única condição de um escritor, seja de qual geração, cultura e época ele for, é a de ser único e irredutível.”

 

 

O escritor e a granada

 

“A grande diferença entre um escritor e um trabalhador da escrita (ou um escritor profissional) é que o último controla sua obra. Ele se põe a serviço da demanda. O romance não pode ser muito curto, mas também não muito longo, deve se adequar a um gênero, não ter muitos diálogos, ser latino-americano, mas não completamente. Esse escritor inspeciona sua escrita numa torre de controle, com o agente literário ao telefone. Por outro lado, o escritor não profissional não pode controlar seu coração, precisa fazer o livro que precisa fazer, até as últimas consequências. Precisa escrever o que tem de escrever. Mesmo que não seja o livro que lhe convém, mesmo que destrua sua figura de autor, mesmo que não seja o que se espera dele, mesmo que o avisem que assim não terá muitas traduções nem prêmios. E, acima de tudo, mesmo que possam cancelá-lo. A missão da literatura não é separar o carrasco de sua vítima ou julgar quem deve ser condenado à morte, mas sim transgredir. Um pouco como aqueles que trabalham com material explosivo: nunca sabem quando a granada finalmente vai falhar e explodir, destroçando suas mãos.”

 

 

Prêmios literários

 

“Não deveriam dar um prêmio literário a um(a) escritor(a) por seus compromissos políticos públicos, por seu posicionamento de defesa dos direitos humanos. O âmbito público é uma fraude. Beauvoir e Sartre jogaram Bianca Bienenfeld, sua jovem amante judia e brinquedo sexual, na boca dos nazistas. Neruda, comunista e lutador, deixou morrer de fome Malva Marina, sua filha com hidrocefalia, a quem chamava de “o monstro de três quilos”. Malraux, herói francês, chamou sua odiada filha Florence de “o objeto”. “O artista tem de começar sua obra com o mesmo ânimo que um criminoso”, diz Degas. “Quando começo a escrever, o mundo se torna meu inimigo”, diz Kertész.

 

 

Festivais literários

 

“Nos festivais literários, importa muito mais se mostrar ecologista, anticapitalista, vegano, antirracista e pró-imigração e inclusão que a obra em si, que as reflexões que os autores convidados possam ter sobre literatura. Nos programas, nas mesas, menciona-se em destaque se você é dissidente, pró- -Palestina, humanista etc. Mas não importa se você é antirracista mas antissemita, se é ambientalista mas pedófilo, isso não é visto como uma contradição. O importante para os organizadores é que você tenha uma causa e a mostre abertamente, mesmo que entre em conflito com outras. É quase como se nós autores fôssemos convidados aos festivais literários para lavar dinheiro, ou a consciência. A literatura hoje é uma cópia da vida inautêntica de Heidegger. O mercado literário hoje é a hipérbole dos dois pesos e duas medidas.”

 

 

Sem adequação ao tempo

 

“Por que o escritor deveria se adequar à mentalidade de seu tempo? As melhores obras foram transversais, oblíquas: adiantaram-se ao pensamento de sua época ou retrocederam. Se aplicássemos os limites da vida civil à ficção, qual sentido teria a arte? Seria como uma cópia ruim da vida. A arte é uma visão, e as visões são sempre proféticas.”



 

A escrita com a arma da ideologia

 

“No momento em que um intelectual cede ao pensamento único, histericamente se recusa a tentar entender o ponto de vista do outro (ainda que seja um inimigo, sobretudo um inimigo); nessa recusa de querer saber, ele deixa de ser um intelectual. Acredito que hoje existem dois estilos irreconciliáveis: aqueles que assumem a independência da literatura e os que escrevem apontando a arma da ideologia. Mas, acima de tudo, há duas maneiras de ler, também irreconciliáveis. Uma das tradutoras de ‘A débil mental’ me pede para abrir aspas quando a personagem se refere a si mesma como retardada mental. Ela diz que, em seu idioma, é ofensivo. “No meu também”, respondo. “É por isso que estou propondo que abramos aspas”, ela me diz. Isso equivaleria a usar próteses morais ou aspas policiais.”