Ludimila Moreira
Especial para o EM
Augusto de Campos, na reedição de seu “Pagu Vida-Obra”, em 2014, parecia antecipar o mote da Flip de 2023. O poeta, tradutor e artista visual argumenta que a maior preocupação foi, por um lado, remitificar Pagu, e por outro, desmistificá-la.
O autor reivindica uma renúncia à excessiva glamorização da personagem para darmos preferência à sua atividade literária e intelectual, aos seus poemas, crônicas e críticas, à sua postura inabalável em prol da literatura de ponta, ao ímpeto revolucionário de suas posições políticas.
Sob o manto destas reivindicações de Campos, “Patrícia Galvão: Pagu, militante irredutível”, de Maria Valéria Rezende, chega ao mundo literário sob o selo Coleção Brasileiras, da editora Rosa dos Tempos, do Grupo Record, coordenado pela escritora e tradutora Joselia Aguiar.
Um livro de memórias que focaliza as jornadas das múltiplas militâncias de Pagu e Maria Valéria Rezende (artísticas, marxistas, feministas, literárias e também religiosa, no caso de Maria Valéria que hoje faz parte da Congregação Nossa Senhora - Cônegas de Santo Agostinho) mas ao mesmo tempo, em uma perspectiva de feição testemunhal e filosófica, prolonga o recorte das militâncias para uma sonda lírica das partilhas sentimentais, intelectuais e existenciais entre as duas mulheres artistas e escritoras.
Uma sonda que, em fôlego e resgate mnemônico da já consagrada escritora Maria Valéria, aterrissa em Santos e orbita pelas viagens, reminiscências, pesquisas para construir um novo álbum sobre Patrícia Galvão, uma memorabília de afetos e ideologias que ainda hoje reverberam nas escolhas éticas da autora do premiado romance “Quarenta dias” (2014), publicado pela Alfaguara.
Órbita que culmina em gravações da autora em sua casa em João Pessoa (PB), que ela vai nomear como memórias ditas. Maria Valéria ainda era uma criança no início da década de 1950 quando conheceu Patrícia Galvão já em Santos.
Santos foi uma escolha de Patrícia e seu companheiro jornalista e escritor Geraldo Ferraz em um momento delicado da vida dessa multiartista que adoecida pelas perseguições e prisões políticas durante o estado varguista viu na cidade marítima um reencontro com as pulsões de vida, Patrícia já havia morado em Santos na juventude e parte de sua relação com o partido comunista dali e com os estivadores foram experiências decisivas para a escrita de seu romance “Parque industrial”, de 1933.
Em um dos últimos capítulos do livro, intitulado “Tempo de escrita”, Rezende focaliza a jornada de Pagu após 1940 quando deixa a prisão e escreve uma carta testemunho endereçada ao amigo e já amor, pai de seu segundo filho, Geraldo Ferraz.
Ali deixa de assinar como Pagu e seu retorno à imprensa é prejudicado pelas passagens que tem como presa política, começa então a assinar crônicas, artigos, poemas com pseudônimos. Em um circuito Rio de Janeiro (onde colaboram com a Agência France-Presse); São Paulo e depois Santos trabalham para os jornais como críticos e tradutores, fazem juntos o Suplemento Literário em que Galvão assina uma seção para divulgar e traduzir autores de línguas inglesa e francesa chamada de “Antologia da Literatura Estrangeira”; nomes como Dylan Thomas, Joyce, Katherine Mansfield, Artaud.
Ao longo da linguagem confessional, genealogias e retrospectivas de Galvão e Rezende são delineadas. Descobrimos, por exemplo que o pai de Maria Valéria era um médico humanista e, por ser filiado ao Centro de expansão cultural, a família tinha acesso à uma frisa, camarote, do Teatro Coliseu. A frisa, localizada ao lado da família de Valéria, era reservada para a crítica, onde ficavam Pagu e Geraldo Ferraz, jornalistas de A Tribuna.
Uma proximidade geográfica que se faz interlocução, acolhida e amizade. Rezende faz de seu torvelinho de memórias uma epopeia que presentifica o imaginário cultural e político de Santos, apelidada de Moscouzinha, à época de Pagu. Além do imaginário, nesta epopeia se materializa as filiações intelectuais e políticas recuperadas por Rezende em uma espécie de escrita de si que alcança pela admiração e nostalgia a vida de Galvão.
Enquanto essa ingressa nos anos 1930 na Juventude Comunista, Rezende recupera seu passado na Juventude Estudantil Católica e nesse entrecruzamento de vidas se forja um texto sobre as artes e a política no Brasil do século 20.
A autora retraça seus encontros e partilhas com Patrícia tanto no Teatro Coliseu, quanto no bar Regina. Reconvoca a extensa ficha prisional de Pagu para falar das sequelas na saúde física, do sofrimento psíquico inscrito nas tentativas de suicídio para nos informar que a investigação policial sobre a atuação política de Pagu só chegara oficialmente ao fim em 1982, quase 20 anos depois de sua morte.
Nessa miscelânea de reminiscências, Rezende desfaz o mito de Pagu como a normalista burguesa para falar de sua infância como moradora de uma casa modesta nos fundos da tecelagem de seda ítalo-brasileira que serviria depois de inspiração para a escrita de “Parque industrial”.
Diante de um ritmo vertiginoso advindo do desejo de Rezende de narrar a interseção de pautas, sonhos e crenças entre ela e Galvão, “Pagu, militante irredutível” constrói um mosaico de pautas sociais e inquietações existenciais convergentes que impulsionaram a vida de investimento libidinal de cada uma.
Pagu se filia ao Partido Comunista e adentra à ética de proletarização indo trabalhar em um cortiço na vila operária na avenida Suburbana no Rio de Janeiro inicialmente como costureira depois como copeira e funcionária da companhia de cigarros Sousa Cruz. Diante dos desmandos do partido, da proibição que reencontrasse Oswald e Rudá e de seu adoecimento retorna para São Paulo.
Maria Valéria Rezende reconta em uma dicção de alegria e obstinação como se tornou uma freira missionária e sua militância a partir dos anos 60 seja em uma vila de metalúrgicos na zona leste de São Paulo ou como educadora popular no Timor Leste, Chile e Nordeste brasileiro.
A saga como artista e militante internacionalista de Galvão também aparece: Califórnia, Japão, China, Sibéria, Rússia e Paris. Os vínculos de Galvão com os artistas franceses do surrealismo (André Breton, Louis Aragon Paul Éluard, René Crevel e André Malraux) também são explorados neste livro repleto de história.
Rezende consegue palmilhar toda a trajetória de Galvão, relembra sua filiação ao Partido Socialista Brasileiro, aborda sua candidatura à deputada estadual, seu ingresso em 1952 na Escola de Arte Dramática e a tradução de nomes como Arrabal, Ionesco e Octavio Paz.
O que ainda mais ressoa para Maria Valéria nesta compilação de afetos e nostalgia é a chegada do casal Galvão e Ferraz em sua cidade, Santos. É desta quase década (vivem em lá por oito anos) todo o rastilho de memórias e pesquisas de Maria Valéria.
Na cidade litorânea que Galvão tanto amava publica artigos e crônicas; escreve críticas sobre dramaturgia, é nomeada para a Comissão Municipal de Cultura e estabelece um acordo com a Escola de Arte Dramática de São Paulo que passa a levar para Santos todo mês um espetáculo realizado pelos estudantes.
Coordena o TUS, Grupo de Teatro Universitário Santista, e cria em 1958 o I Festival de Teatro Amador de Santos e Litoral. Rezende ainda trata com muita sensibilidade o desejo de uma morte anônima que faz Galvão embarcar em 1961 para Paris. Outra tentativa fracassada, mas que faz a artista descobrir lá um câncer de pulmão. Ela retorna a Santos e morre em 1962.
Retornar aos mundos ficcionalizados e palmilhados por Patrícia Redher Galvão através da voz narrativa de Maria Valéria Rezende é percorrer acontecimentos, textos e obras que dão concretude ao Brasil moderno, ao sujeito cindido por ditaduras, guerras e obsedado pela liberdade, do corpo e da linguagem. “Patrícia Galvão: Pagu, militante irredutível” ganha força como extensão de uma amizade que persiste em inspiração, saudade e desejo de transformação social pela cultura.
Ludimila Moreira é historiadora e doutora em literatura pela Universidade de Brasília (UnB)
“Patrícia Galvão: Pagu, militante irredutível”
De Maria Valéria Rezende
Rosa dos Tempos
Coleção Brasileiras
123 páginas
R$ 60