Jorge Ben
 -  (crédito: ©Pedro Silveira/divulgação)

Jorge Ben

crédito: ©Pedro Silveira/divulgação

“Pra começar, o cara tá vivo”, pontua o DJ KL Jay. O “cara” em questão é Jorge Ben Jor, e o comentário inicia a orelha escrita pelo membro dos Racionais MC’s para o livro “Balanço afiado: estética e política em Jorge Ben”, de Allan da Rosa e Deivison Faustino (ou Deivison Nkosi). Lançado pelas editoras Perspectiva e Fósforo, o trabalho visa, dentre vários objetivos, homenagear o cantor, instrumentista e compositor carioca, que celebra 85 anos na próxima sexta-feira (22/3). “E pra estar vivo nos dias atuais, com oitenta e poucos anos, sendo artista, é preciso uma habilidade (Tony Tornado que nos diga) ancestral e espiritual”, continua KL Jay, indicando que a obra, como seu título indica, vai além de uma exaltação ao cancioneiro do artista.


Por meio de cartas, crônicas, contos, análises de músicas, mensagens de aplicativos e transcrições de diálogos entre os autores e debates com personalidades, como outros sociólogos e escritores, as 288 páginas de “Balanço afiado” esmiuçam o encontro que existe entre a musicalidade do artista, nascido em 1939, e culturas de matrizes africanas, discutindo “meandros entre a segregação e intimidade que estão na base do racismo à brasileira” (como descrito na contracapa do livro), sob a égide de pesquisas feitas por Faustino e da Rosa e a paixão de ambos pelo “alquimista Ben”.


“(Durante o período da pandemia da Covid-19,) meu trabalho era contar mortos, como cientista social de um grupo do Instituto Pólis, de monitoramento da desigualdade racial nas mortes por Covid. Jorge Ben foi um respiro de sanidade em um momento de calamidade pública”, recorda Faustino, sociólogo, professor e autor de livros como “Frantz Fanon e as encruzilhadas” (Ubu, 2022).

 

 

“Líamos tudo o que encontrávamos sobre ele e a presença negra nas Américas. Também passamos meses estudando a obra jorgebeniana, música por música, disco por disco, para tentar entender ou sentir a dimensão estética e política daquele jeito de tocar e cantar. Posteriormente, entrevistamos músicos e intelectuais brilhantes como Muniz Sodré, Salloma Salomão, Carmen Luz, Melvin Santhana, Allan Abbadia e Adriana Moreira, entre outros, que expandiram muito nossa percepção sobre o Ben e, sobretudo, sobre o quanto ele é um dos maiores expoentes da presença cultural negra no Brasil”, completa.


Existem nuances ao longo da obra que ilustram e enaltecem toda essa influência de Ben na sociedade brasileira. Uma delas diz respeito ao fato de Jorge por vezes dizer que era apolítico, como atestam os próprios autores de “Balanço afiado”. Porém, o que se ouve em discos como “Negro é lindo” (1971), “A tábua da esmeralda” (1974) e “África Brasil” (1976), dentre outros, são atos por meio dos quais Jorge se posiciona, sim, em várias frentes – incluindo sociais e religiosas – se não de forma patente, de maneira latente.


“Jorge Ben, como tantos artistas negros, também disfarçou sua contundência. Preservando-se, por vezes, afirmava uma ausência de luta onde pulsavam provocações e usos de símbolos de luta”, enfatiza da Rosa, angoleiro, historiador, mestre, doutor e autor de obras como “Ninhos e revides: estéticas e fundamentos, lábias e jogo de corpo” (Nós, 2022).

 

“Em plena ditadura civil-militar brasileira, ao fim dos anos 60, testemunhando a sangria, os cala-boca e tanta tortura, além das interdições que impunham muralhas a tantas carreiras, ele podia se declarar apolítico e cantar ícones de afirmação negra. Nos anos em que o regime ditatorial impunha a retirada dos itens ‘cor’ e ‘raça’ do censo populacional, porque bradavam que isso de racismo era problema lá dos EUA e que aqui vogava a propalada Democracia Racial, que garantia igualdade de oportunidades para todos, Jorge logo lançava ‘Negro é lindo’ e entoava loas em Muhammad Ali (boxeador norte-americano), canção feita para uma das maiores figuras de força e desobediência negra da época (referindo-se a ‘Cassius Marcelo Clay’).”


O músico e a música


Em “Balanço afiado”, da Rosa e Faustino desmistificam uma “máxima” empregada por críticos musicais de que Jorge Ben era mais “instinto” do que um músico técnico. A defesa é evidente em análises de músicas, vide “Berenice”, do disco “A banda do Zé Pretinho” (1978), e “Velhos, flores, criancinhas e cachorros”, de “Solta o Pavão” (1975), e dos debates ao longo do livro.


“O Jorge Ben é tipo uma orquestra preta numa pessoa só, manja? Sofisticada e estilingueira", pontua da Rosa (página 15). Nkosi complementa: “Feito um John Coltrane nessa habilidade místicade elevar nossa percepção a outro nível, onde você não é mais só você, mas um você no mundo, no universo... no desencanto" (página 16). Da Rosa arremata ainda que “aquela oposição entre o intuitivo e a razão é uma lenda que talvez nem os ocidentais mais bambambãs acreditam ou praticam. (...) A obra de Jorge Ben tá muito distante dessa pecha de 'meramente intuitiva’” (página 57).


Como exalta o poeta e crítico literário Edimilson de Almeida Pereira, “Balanço afiado” é, “em princípio, um estudo sobre o estilo criativo e o contexto histórico-social em que Jorge Ben vem traçando sua trajetória pessoal. Sob esse aspecto, não se está distante de uma quase biografia no artista. Contudo, a familiaridade com o livro se esgota nesses aspectos. Isso porque tudo o mais que ela apresenta se realiza numa fronteira geográfica ou conceitual, de modo que os leitores terão de se adaptar às suas guinadas estilísticas e identitárias”.


No ano em que “Sacundin Ben Samba” (1964) e “Ben é samba bom” (1964) celebram seis décadas e “A tábua de esmeralda” (1974) assopra 50 velas, Jorge Ben e sua obra seguem vivos, pulsantes e cada vez mais urgentes. E “Balanço afiado” emerge tanto como "porta de entrada" àqueles que ainda estão iniciando (ou não se iniciaram) na arte de Ben quanto como trabalho digno e relevante a fãs do “alquimista” e um tributo e tanto ao artista, que, como evoca KL Jay, “sempre esteve aqui, no meio de nós”.

 

Entrevista com Allan da Rosa e Deivison Faustino

 

Deivison Faustino e Allan da Rosa

Deivison Faustino e Allan da Rosa esmiúçam obra de Jorge Ben e traçam conexões com política, sociedade, religião e matrizes africanas em "Balanço afiado"

Divulgação/Fósforo

 

Um dos pontos que vocês deixaram evidente desde o início foi o de que queriam uma obra que exaltasse a obra e a figura do Jorge Ben e que fosse além, tanto que no nome do livro estão as palavras “estética” e “política”. Inclusive, criticando uma branquitude que dizia sempre que Jorge Ben era “instinto” e não “técnica”, como se fosse algo positivo. Gostaria que falassem um pouco a respeito dessa crítica a essas, como vocês bem apontam, formas veladas (ou evidentes) de preconceito.

 

Deivison Faustino: Impossível separar esse livro de nossas pesquisas anteriores. Estudo o pensamento de Frantz Fanon (psiquiatra e filósofo político martinicano; 1925-1961) há 20 anos, e Allan da Rosa, além de ser uma grande referência contemporânea na literatura e na arte/educação, estuda as diversas expressões de cultura de matriz africana presentes no Brasil e seus estilos e formas.

 

O Fanon nos lembra que o racismo não está só na ofensa direta, mas também no elogio racializado, que só consegue enxergar os negros e indígenas como selvagens. Vimos alguns críticos de referência elogiarem o Jorge Ben por sua criatividade, ludicidade e irreverência, mas omitindo sua sofisticação. Alguns até afirmam uma suposta falta de afinação domínio-técnico.

 

Em nossa pesquisa, ficou óbvio que tal observação se origina de uma ignorância a respeito de alguns preceitos presentes na musicalidade afro-brasileira. No entanto, se superamos a teoria e a grafia musical europeia como suposto parâmetro universal de música, percebemos um conjunto de aspectos estéticos altamente sofisticados na pegada sonora proposta pelo Ben.

 

Jorge Ben é um músico em pretuguês, termo que trazemos há tanto tempo em nossos cursos, pelo menos há 15 anos, e que, enfim, alcança maiores plateias, mesmo que agora às vezes de modo tão superficial e idealizado. Jorge foi um Caliban (personagem meio humano, meio monstro, em “A tempestade”, obra escrita por William Shakespeare entre 1610 e 1611) diante da suposta antropofagia bossanovista partindo também de um misto de samba com maracatu, ou seja, trançando de novo linhas que se originam de um mesmo novelo.


Allan, logo na página 15 do livro, você diz que "Jorge Ben é tipo uma orquestra preta numa pessoa só. Sofisticada e estilingueira". Poderia fazer uma análise sobre essa união do Ben de ser técnica, feeling, dança, balanço, ancestralidade e bom gosto musical, seja apenas com seu violão, seja com seus vocais, com a união entre eles ou com toda uma banda ou orquestra?


Allan da Rosa: A obra musical de Jorge Ben é uma teia de muitas fontes estéticas antigas e recursos técnicos e linguagens contemporâneas, ou seja, um fruto das modernidades negras. Isso está forte também em seus temas políticos e na forma como anuncia uma urbanidade com encantos e mistérios, mesclando morros e estádios, chuvas e mares, asfalto e mandinga, trançando os ares da metrópole com míticas rurais e que arregaçam fronteiras nacionais e cercas de calendário, já que mescla muitas épocas em sua poética. Sua lábia tem uma vastidão de formas, seja a do chiado que sobrepõe camadas sonoras no canto, seja a dos melismas que estendem sílabas com excitante oscilação das notas (como em “Que nega é essa?”) ao modo de alafins africanos, de cantores-sacerdotes islâmicos, de aboiadores sertanejos, de capoeiras ou de blueseiros.

 

E, claro, sua estampa no violão é única, tanto pela afinação misteriosa quanto pelo talento descomunal em fazer a levada, o andamento e o colorido, em notas imprevisíveis que instigam os corpos a dançarem redondo e pontilhado. A música dele, como muitas das músicas de origens negras, é circular, e isso tanto é atrativo comunitariamente quanto abre jeitos de improvisar e ser original a cada rodada, a cada “repetição” das frases musicais, que quase sempre são diferentes entre si.


Há textos, dentro dos capítulos, que agem como contos, crônicas ou cartas. Um deles, que me tocou bastante, está no capítulo 5, "Jesualda encontra o Homem da Bombeta Florida", que me parece um conto, em que personagens em terceira pessoa falam de vários assuntos, incluindo dramas, num reflexo de inúmeras histórias na sociedade.


Faustino: A gente experimenta muitos formatos. As cartas são endereçadas para personagens narrados pelo Ben. As chulas são tentativas de escrever sua musicalidade em pretuguês. Os diálogos entre nós vão revelando nossas descobertas conforme elas foram se apresentando a nós. Mas os contos são brisas fundamentadas de situações que poderiam ter ocorrido. Jesualda, importante personagem narrada por Ben, encontra o Homem da Bombeta Florida em uma aula de samba-rock na periferia. Quem são e qual a função dessas personagens na história? Esperamos que os leitores e leitoras descubram esse e outros mistérios lançados pelo Jorge Ben e trazidos para o livro.


O que o músico, ser humano, alquimista, zagueiro, craque e flamenguista Jorge Ben mais tem a nos ensinar no Brasil atual e no mundo atual?


Faustino: A obra de Jorge Ben é alquimia transmutadora que permite refletir sobre história da ciência, física quântica, política, masculinidades, leis da acústica, particularidades culturais, futebol, heranças africanas no Brasil, indústria de massas, religiosidade e, sobretudo, uma musicalidade que contribuiu para, a seu modo, reinventar esteticamente um Brasil muito mais diverso e inclusivo do que o raquítico projeto de identidade nacional pensado pelas classes dominantes sudestinas.

 

Há muitos aprendizados a se extrair daí, mas, talvez, o principal seja a elegância e a perseverança com que ele nos evidencia que o Brasil, formado pelo genocídio, expropriação das indígenas e a escravização negra, é muito mais negro e indígena do que imagina ser. A exaltação dessa presença, diversidade e sofisticação é tão importante quanto a denúncia do racismo que até nos elogia cheio de simpatia, para parecer aliado.


Trecho do livro


“Tematicamente, Jorge Ben é íntimo de referências solenes que englobam preces, diários míticos de cientistas, paragens monárquicas e motes cerimoniais de folias e de gozo. E também finta suas letras encharcando-as com menções ao mundo pop, do cinema, das histórias em quadrinhos, das manchetes sensacionalistas, dos bailes suburbanos, dos produtos nas vitrines da moda, além de ícones islâmicos, hindus, bíblicos, medievais europeus, greco-romanos e, claro, africanos, a começar pelas matrizes etíopes.”

 

“Balanço afiado: estética e política em Jorge Ben”


De Allan da Rosa e Deivison Faustino
Editoras Perspectiva e Fósforo
288 páginas
R$ 89,90