Matheus Lopes Quirino
Especial para o EM
Aos 27 anos, a espanhola Xita Rubert não gosta das redes sociais, é, como dizem no linguajar da geração z, uma ‘low-profile’. Não para menos: a escritora, que tem colaborado com importantes veículos em seu país e realiza um doutorado em Princeton, lança um romance demolidor que mostra a ruína humana de quem vive pelas imagens.
Sua conta no Instagram tem apenas uma dúzia de postagens, a maioria delas trechos de leituras, edições de grandes mestres da literatura, como o crítico George Steiner e os romancistas Stendhal e Scott Fitzgerald. Assim como o autor de “O grande Gatsby”, a escritora procura manter um senso de humor afinado. Ela não dá bola para o politicamente correto.
Seu romance de estreia “Meus dias com os Kopp” (DBA Editora), com tradução de Elisa Meneses, é um sarro. Rubert faz a caricatura de uma elite cultural que se leva muito a sério para sair bem na foto. No centro do romance, está Andrew, um inglês problemático (em múltiplos sentidos) metido a artista contemporâneo e com pais, para dizer o mínimo, excêntricos.
Em narrativa curta, que poderia ser classificada no Brasil como uma novela, a jovem escritora olha pelo retrovisor a filosofia grega para mostrar os limites da compaixão na figura humana. Ao trabalhar paralelamente com o adoecimento do pai, Rubert cria intersecções entre loucura, desejo e o poder do aprendizado, principalmente quando a narradora (já mais velha) reflete sobre as férias malucas que mudaram sua vida.
O cenário, um hotel cinco estrelas de uma cidade ao norte da Espanha. Os personagens, intelectuais pedantes que se envolvem em um jogo de cintura para causar boa impressão, já que Andrew lá está para receber uma homenagem do monarca. Para falar sobre sua estreia, a autora conversou com o Estado de Minas.
Confira a entrevista a seguir:
Você sempre achou que seria uma escritora?
É engraçado, nunca me senti nada além de uma escritora. Quando eu era pequena, enchia livros de contos, peças de teatro, que depois fazia minhas amigas da escola representarem: elas eram minhas atrizes e eu era a roteirista delas. Mas antes de saber ler e escrever, eu já era fascinada por narrativas, histórias.
Quando você decidiu escrever sobre a loucura e por que escrever um romance sobre um escritor cercado de loucos?
Eu acho engraçado que “é um romance sobre um escritor cercado por loucos”. Mas a narradora também é louca, não é? Em todo caso, as questões não são decididas com precisão, são impostas. E eu, por qualquer motivo, tendo a ver o perverso no que é suposto ser correto ou moral, nas fachadas sociais, e em como aqueles que não são sãos são chamados de loucos, porque você tem que chamar o que é louco, fraco ou doente…, não temos coragem de cuidar ou acolher.
Você escreve sobre personagens excêntricos que fazem parte de uma elite cultural. Como é escrever sobre um núcleo social ao qual você pertence e, por fim, retratar todas as hipocrisias do meio?
Eu cresci com minha mãe [A escritora Luísa Castro] e sua família, meus avós. Eles eram camponeses e minha mãe é poeta, e minha educação foi o oposto de excesso, extravagância ou dinheiro. Quando me mudei com meu pai [O filósofo e ex-deputado XavierRubert], ainda adolescente, para um ambiente totalmente diferente, vi como algumas classes altas se dizem culturalmente superiores, mas maltratam e abandonam quem não se submete a seus caprichos. Acho que o olhar dos meus narradores vem justamente desse choque: se eu “pertencesse” ao círculo que retrato, não veria certas coisas. Interessa-me - porque me incomoda - desvendar as mentes dos que enganam, como nasce a crueldade, como se educa a supremacia…
Aos 27 anos, você já faz doutorado em Princeton e publicou um romance que já foi traduzido para outros países. Você se considera precoce?
É muito difícil viver da própria literatura: estudá-la e ensiná-la parecia uma opção lógica compatível com a escrita. Resolvi fazer meu doutorado nos Estados Unidos, concorrendo a uma bolsa de estudos, pois desde jovem sempre tive muita atração pelo inglês, e meus escritores favoritos escrevem em inglês. Um campus isolado e muito tempo para ler também é o que é necessário para escrever.
Para ser escritor é mais necessário ter disciplina, boas referências ou inspiração?
Muitas vezes se divide entre inspiração (ou talento) e disciplina, mas o que vejo é que talento se expressa justamente na coragem de seguir, perseverar, escrever, descartar, escrever de novo, porque esse é o caminho, não outro, esse sim, de certa forma talento e disciplina são a mesma coisa. E ambos estão ligados a saber dizer não. Você tem que abrir mão de muitas coisas diariamente. Eu digo não para quase tudo. Escrever é quase como um trabalho de atleta, de corpo e mente. A segunda coisa importante, sim, é se cercar de pessoas que leem e apreciam você. Encontrei esta comunidade em Princeton. Escrevi o romance lá, mostrando para meus amigos escritores da Argentina, Equador e México, que estavam iniciando o doutorado como eu, e que me incentivaram. Então decidi enviá-lo para editoras espanholas.
Não é o caso do seu romance, mas acho que estamos vivendo uma epidemia de ‘eus’. Autoficção, narcisismo, enfim, um culto muito forte à imagem. Como você analisa esse “boom” da autoficção na era das redes sociais?
A escrita autobiográfica sempre existiu, e é uma tradição muito interessante, mas a autoficção que você menciona e o tema das redes sociais não me interessam muito. No meu caso, literatura tem a ver com ficção, e a ficção é um exercício em direção à verdade, que só pode ser alcançada se você abandonar sua própria realidade, identidade e experiência e se entregar à voz, aos personagens, às cenas da história que tenta revelar algo que antes permanecia oculto, até para si mesmo.
De alguma forma percebi que você escreve sobre a situação da mulher na literatura, com as personagens Virginia e Sonya. Elas têm sempre razão, orientando o pai e o marido, respectivamente. Qual é a discussão que você traz com esses papéis sociais de gênero?
Talvez seja uma daquelas coisas que ficam escondidas, e que devem ser escavadas e mostradas: o papel ambíguo da mulher em ambientes onde impera a pretensão social, “está tudo bem” e “todos somos felizes”. Também me interessa mostrar o lugar humilhante em que ficam os doentes naqueles ambientes onde se você não é um cidadão útil ou fingido, você vai para o lixo.
Você tem algum escritor brasileiro que admira? Ouvi dizer que você gosta de Clarice Lispector...
Lispector tem a inteligência da ironia, de não se levar a sério e ainda assim saber que tudo o que ela fala é sério e verdadeiro. Mas sinto-me próxima da cultura lusófona em geral; talvez porque a minha língua materna seja o galego. Gosto muito do Daniel Galera. Li algumas histórias maravilhosas de Emilio Fraia. Agora quero ler Antônio Xerxenesky (que foi o editor do meu romance no Brasil). Percebo que os escritores brasileiros trabalham a partir de uma concepção muito ambiciosa de literatura: como lugar do pensamento, da investigação aprofundada da psicologia, da análise do passado, presente e futuro, e que por isso não renunciam a sua própria voz. Eu também me sinto assim. E quando li o último livro da Galera (“O deus das avencas”) pensei: é isso.
Li uma entrevista em que você dizia: “Não escrevo auto ficção, nem tenho interesse em me posicionar em qualquer tipo de reivindicação política”. Você acha que literatura e política não devem se misturar?
Eu disse isso porque na Espanha, como em muitos lugares, eles tentam rotular você politicamente quando você é simplesmente um escritor. Mas o fato de a literatura não fornecer uma mensagem clara não significa que ela não tenha uma intenção crítica. A literatura conta o que escondemos diante de nós mesmos, diante do espelho, quando dizemos: sinto isso, sou isso, acredito nisso, pertenço a isso. Sim, a política é a melhor forma que encontramos para organizar as sociedades e tentar fazer justiça, mas muitas vezes é pervertida e cai no lago da demagogia e do poder. A literatura não, a literatura resiste porque não está a serviço de nada, de nenhum pré-conceito, é uma forma de mostrar a complexidade do indivíduo e da sociedade, e por isso é superior a qualquer identidade ou posição política.
Como você administra sua privacidade? No Brasil, por exemplo, algumas editoras incentivam (o que gera pressão) que seus autores sejam ativos nas redes. Eu vi que você não é. Você acha que as redes são insuportáveis?
Acho que não contribui em nada mostrar a vida privada nas redes, essa própria exposição é uma imagem, uma ficção. Mas tenho redes sociais: gosto de estar em contato com leitores de países que ainda não posso visitar. Tenho me correspondido com leitores do Brasil que espero encontrar pessoalmente algum dia.
Matheus Lopes Quirino é jornalista e escreve sobre literatura e artes visuais
“Meus dias com os Kopp”
De Xita Rubert
Tradução de Elisa Menezes
DBA
128 páginas
R$ 54,90