“— Mamãe, onde está o papai? — O papai... Seu pai foi levado ontem para a prisão.
— Qual prisão...? Vamos para a prisão também — disse Ivan. — Vamos viver lá. A mãe respondeu que era bom viver ao lado do pai em qualquer lugar e que poderia viver com ele até na prisão, só que não permitiam qualquer um na prisão. — O pai convenceu todos os operários da fábrica a não trabalhar. Que o dono primeiro dê um aumento, pois as crianças não têm leite para beber. — Não quero leite — disse Ivan.
— Não precisamos dele, eu bebo água, você também... Mamãe, vamos para a prisão! —Dirão que não podemos — respondeu a mãe. — Será preciso primeiro fazer uma greve ou matar alguém, só então trancariam você com cadeado na prisão. Ivan olhou para a mãe e sorriu; ele adivinhara o que deveria ser feito. — Mamãe, vamos matar! — disse ele. A mãe então se zangou: — Você ainda é pequeno e fala o que não deve... O seu pai não quis matar ninguém, ele queria que você tivesse leite...”
O trecho acima é do conto “O dom da vida”, um dos oito que compõem o livro “Iúchka e outras histórias” - volume 1, de Andrei Platônov (1899-1951), que será lançado em Belo Horizonte em 30 de março. Um dos mais importantes escritores russos do século 20 com uma bela obra humanista, Platônov segue praticamente desconhecido dos leitores brasileiros. Em 2022, a editora Ars et Vita, de Belo Horizonte, publicou no Brasil, com tradução de Maria Vragova, o inédito e monumental romance “Tchevengur” – uma cidade imaginária nos confins da Rússia transformada numa espécie de paraíso comunista, usada por Platônov para satirizar o regime soviético.
Agora, a Ars et Vita apresenta aos leitores brasileiros os contos “A borboleta colorida”, “Iúchka”, “O curso do tempo”, “De bom coração”, “Toda a vida”, “O dom da vida”, “Afônia” e “A oitavinha”, com bonitas ilustrações do artista plástico capixaba Rick Rodrigues, mestre em artes pela Universidade Federal do Espírito Santo.
Organizado e traduzido por Maria Vragova, é o primeiro volume de uma coletânea que terá ainda outros dois ao longo deste ano, num total de 24 contos do autor russo e ilustrações de artistas visuais brasileiros. Os contos revelam um olhar peculiar, bem humanista, que mescla realismo e fábula com histórias da cultura popular russa, de gente simples e sofrida do interior do país, muitas vezes submetidas a situações cruéis. São personagens infantis e também adultos que veem o mundo com olhos de criança, com narrativa poética e filosófica.
Como Maria Vragova explica no prefácio de “Iúchka e outras histórias”, são contos escritos entre a década de 1930 e pós-guerra da década de 1940: “Podem ser considerados contos filosóficos. Andrei Platônov é um dos poucos autores russos cuja sensibilidade e perspicácia transparece ao mesmo tempo em diversos aspectos do pensamento humanitário. Seus textos constituem uma declaração filosófica e artística holística, uma reflexão metafísica sobre o que sucedia com um país e sua população”.
Naquela época, a Rússia estava transformada em União Soviética sob o duro regime de Josef Stálin. Na vastidão territorial do maior país do planeta, a luta pela sobrevivência em meio à pobreza e a fome era gritante. Aos poucos, em suas obras, Platônov, inicialmente alinhado ao regime, vai manifestando seu desencanto.
Mas enquanto em “Tchevengur” ele busca a sátira, muitas vezes sutil, e a alegoria, nos contos prevalece uma filosofia poética, a capacidade de tirar beleza até do sofrimento e da morte. Um exemplo é a ingênua esperança do menino Afônia de suplantar uma tragédia pessoal, como neste trecho do conto homônimo”: “Afônia, não tenha medo deles [alemães]— disse o avô. — E esqueça eles! Afônia lançou um olhar triste para o avô. — Por causa deles a mamãe morreu. Eles a mataram com fogo. (…) — Volte a si, vovô — disse Afônia.
Eles caminharam até a beira do bosque. As bétulas cresciam ao lado do túmulo camponês, o vento balançava as folhas das árvores, como se pessoas altas e invisíveis andassem pela floresta, tocando os galhos. — Mamãe! — disse Afônia para a terra. — Vá para a casa, vamos viver novamente. O vovô vai construir uma isbá [casa de madeira] nova de madeira.”
No conto “O dom da vida”, o narrador reflete: “A infância permanece como um tempo eterno, intocável nas lembranças do homem. O tempo seguinte, o da juventude e maturidade, escorre, passa e se dilui em esquecimento, mas a infância repousa como um lago num país sem ventos de nossa memória, e sua imagem se preserva inalterada no interior do homem até o fim...”
Outra reflexão significativa é encontrada no conto “Toda a vida”: “No fundo de nossa memória guardam-se sonhos e realidade. E com o passar do tempo, acontece de não ser mais possível distinguir o que aconteceu de verdade do que era sonho — sobretudo se já passaram muitos anos e a lembrança retorna à infância, à luz longínqua do início da vida.
Nas memórias da infância, o mundo há muito passado permanece inalterável e imortal.” É a história do garoto Akim, de 10 anos, que vive contemplando a natureza e deixa o quintal de casa para conhecer o mundo à sua volta. “Na infância, todo o mundo pertence à criança, e Akim transformava tudo o que via em sua própria vivência, pensando em si como se fosse a árvore, a formiga ou o vento, para adivinhar para que vivem e por que estão bem.”
'Pequeno mundo dos pequenos homens'
Maria Vragova analisa: “Andrei Platônov se afastava dos temas ligados à produção industrial, aos planos quinquenais ou à tarefa contínua de construção de uma nova sociedade e se curvava para admirar e descrever o 'pequeno mundo' dos 'pequenos homens'. Surgem na obra do autor temas eternos como o amor, o nascimento, a morte, a felicidade pessoal, o papel da mulher, a relação entre pais e filhos e a relação entre o homem e a natureza”.
A tradutora afirma também: “Em seus contos, a ignorância e o analfabetismo apresentam-se como uma alternativa à 'inteligência' e à cultura escrita, a loucura santa confronta a ortodoxia oficial e a cosmovisão infantil se contrapõe à visão de mundo dos adultos. O entendimento da criança como uma alternativa ao mundo civilizado remonta a Jean-Jacques Rousseau, que apontava a percepção infantil como uma personificação da origem natural, oposta a tudo o que é artificial e falso, antecipando, de certa forma, a ideia utópica de evolução da humanidade. (…) Em diversas ocasiões, os próprios personagens adultos dos contos platônovianos se parecem com crianças, pela inocência, ingenuidade e impossibilidade de viverem no mundo dos adultos.”
O velho Iúchka, no conto homônimo, é constantemente agredido por todos, principalmente as crianças, mas resigna-se com um coração pueril: “Iúchka também estava contente. Ele sabia por que as crianças riam dele e o atormentavam. Acreditava que elas o amavam, que precisavam dele e apenas não eram capazes de amar o ser humano nem sabiam o que fazer para amá-lo, e, por isso, o atormentavam”. A capacidade de criar narrativas que mesclam realismo e fabulação, a compreensão do mundo hostil com um olhar etéreo e contemplativo e a simbiose humana com as demais criaturas e com a natureza tornam única a obra do Platônov em meio a outros gigantes do seu tempo, como Maksim Górki (da obra-prima “A mãe”) e Vladimir Nabokov (do polêmico “Lolita”), que finalmente e – felizmente – para os amantes da literatura, da poesia e da filosofia, vai sendo divulgada no Brasil.
LEIA RESENHA DE “TCHEVENGUR”, lançado no Brasil em 2022
“IÚCHKA E OUTRAS HISTÓRIAS”
(Contos – Volume 1)
• De Andrei Platônov
• Organização e tradução: Maria Vragova
• Ilustrações: Rick Rodrigues
• Editora Ars et Vita
• 128 páginas
• R$ 61,20
Lançamento: 30 de março, das 11h às 14h, na Livraria Jenipapo (Rua Fernandes Tourinho, 241, Savassi, em BH), com a presença de Maria Vragova e Rick Rodrigues
'Mamãe, vamos viver novamente'
“Afônia” é um dos oito contos do livro “Iúchka e outras histórias”, do escritor russo Andrei Platônov (1899-1951), organizado e traduzido por Maria Vragova e que será lançado no próximo dia 30, na Livraria Jenipapo, em Belo Horizonte.
Escrito em 1945, é a história de um menino que vive com o avô, após sua mãe e todo o povo da sua aldeia serem executados pelos alemães. O escritor mostra a crueldade da guerra sob o olhar inocente de um menino que presencia o assassinato da mãe e depois vai ao túmulo acreditando que ela vai voltar para casa. “Mamãe! — disse Afônia para a terra. — Vá para a casa, vamos viver novamente”.
A seguir, o conto publicado com exclusividade pelo Pensar
Afônia era um pequeno homem, tinha uns seis anos de idade. Mas ele próprio pensava que já vivia há muito tempo, que vivia desde sempre e que nada existiu sem ele — nem a vovó Marfa, nem a casa em que moravam, nem o sol, nem a grama, nem os pardais e as moscas, e que, sem ele, o vento nunca soprara. Eles também já viviam há muito tempo — a tia, a casa e a velha cerca. Mas o que Afônia sabia é que sem ele não tinham vivido. Teriam ficado entediados, porque Afônia era a coisa mais importante do mundo, e afinal viviam porque ele existia e estava com eles.
Ao acordar pela manhã, Afônia examinou o quarto — todos os objetos estavam em seus lugares e esperavam por ele? Depois olhou ao redor — estava intacto, como deveria? Tudo estava no lugar, nada se fora dele. Um banco magrelo e seco cochilava no chão e o avô estava sentado nele; ele, pelo visto, voltara de um campo próximo e comia crostas de pão com manteiga. Uma mesa baixa, feita pelo avô nos tempos antigos, se apoiava nas grossas pernas e esboçava um riso com um rosto bondoso de madeira — uma gaveta onde se encontravam as colheres; o sol brilhava no céu através da janela e nesta, um mosquitinho se debatia e zumbia para que o deixassem entrar na isbá, para perto de Afônia. “Espere por enquanto, daqui a pouco eu mesmo sairei para o quintal” — disse Afônia.
— Levante-se, Afônia! — o vovô Ivan Emiliánovitch acordava pela manhã o neto. — Olhe, o sol já está alto e a grama secou do orvalho. Levante-se depressa, se você dormir muito, olhe lá, vai envelhecer dormindo...!
Mas Afônia não acordou. A voz do avô só o fez se espreguiçar e ele adormeceu ainda mais profundamente, para não o ouvir. E sonhou com a grama azul, dizendo palavras, e um rio azul-marinho, cantando baixinho uma canção, como a que lhe cantava a mãe quando vivia no mundo.
— Afônia, pequeno Afônia! — chamava seu avô Ivan. — Levante-se, meu orfãozinho, ou vou ficar entediado aqui sozinho! Mas Afônia de novo não acordou. Ele dormia sobre a palha no porão, onde o avô Ivan guardava os seus últimos trastes. Toda a aldeia onde moravam fora incendiada pelos alemães, só sobraram as cinzas, sobre as quais já crescia a grama. Agora, Afônia tinha cinco anos e em breve completaria seis. No entanto, ele não se lembrava de quando tinha nascido. Achava que vivia há muito, um tempo eterno, e que sempre existira no mundo.
O avô continuava olhando para o neto adormecido, para o seu rosto amável e branco, expressando a vida meiga de sua alma, para os seus olhos semiabertos, azuis como o céu do dia. O avô lamentava sobretudo o fato de que o neto naquele momento não olhava para ele e não via a luz que iluminava a terra.
— Afônia! — disse baixinho o avô. — Vamos visitar a mãe e chamá-la?
Afônia abriu os olhos e respondeu: — Vamos, vovô!
— Será que acordou? — alegrou-se o avô. — Mas primeiro vamos comer as batatas.
— Não precisa — disse Afônia, descontente. — Vamos até a mamãe. A mamãe não come nada, e você sempre está com fome.
— Está bem, não precisa — envergonhou-se o avô Ivan. — Você de pequeno não está habituado a comer, os alemães não deixavam, mas eu estou habituado a comer desde criança...
O avô Ivan e o neto Afônia foram visitar a mãe de Afônia, que era filha do avô. A mãe de Afônia estava deitada na terra na beira de um bosque. Lá, estavam em um mesmo túmulo todos os moradores da aldeia, quarenta e quatro almas. Todo o povo da aldeia Podkliétnoe, que vivia em sete casas, havia sido levado dali para o bosque pelos alemães e lá, morto. O avô Ivan não fora executado pelos alemães porque lhe restava pouco tempo de vida, já era muito velho. Mas os alemães o obrigaram a cavar uma grande cova na beira do bosque e enterrar lá todos os mortos.
Os alemães também ordenaram que o pequeno Afônia vivesse e não o tocaram. Eles o deixaram no bosque ao lado de seu avô Ivan, separado de toda a gente e da mãe de Afônia. Afônia via que sua mãe só olhava para ele. Quando todos já haviam caído mortos, a mãe de Afônia ainda permaneceu um pouco de pé, para ver seu filho por mais tempo, pois o amava e queria estar com ele. Depois, seus olhos embranqueceram, como se fossem cegos, e ela também caiu no chão e morreu.
Os alemães disseram então para o avô Ivan que agora todos os partisans de Podkliétnoe logo ficariam órfãos de pai e mãe, e quem tinha filhos deixaria de tê-los. E você, disseram os alemães ao avô, morrerá sozinho em breve, de velhice e de saudade. Este — disseram apontando para Afônia —, que ele viva sozinho, se lembre de nós para sempre e que conte para os outros, para que nos temam por mil anos ainda.
— Afônia, não tenha medo deles — disse o avô. — E esqueça eles!
Afônia lançou um olhar triste para o avô.
— Por causa deles a mamãe morreu. Eles a mataram com fogo. Vou me lembrar deles.
— Lembre-se deles, Afônia — concordou o avô. — Eu já estou velho e sou estúpido de coração.
— Volte a si, vovô — disse Afônia.
Eles caminharam até a beira do bosque. As bétulas cresciam ao lado do túmulo camponês, o vento balançava as folhas das árvores, como se pessoas altas e invisíveis andassem pela floresta, tocando os galhos.
— Mamãe! — disse Afônia para a terra. — Vá para a casa, vamos viver novamente. O vovô vai construir uma isbá [casa] nova de madeira...
“O avô Ivan e o neto Afônia foram visitar a mãe de Afônia, que era filha do avô. A mãe de Afônia estava deitada na terra na beira de um bosque. Lá, estavam em um mesmo túmulo todos os moradores da aldeia, quarenta e quatro almas. Todo o povo da aldeia Podkliétnoe, que vivia em sete casas, havia sido levado dali para o bosque pelos alemães e lá, morto. O avô Ivan não fora executado pelos alemães porque lhe restava pouco tempo de vida, já era muito velho. Mas os alemães o obrigaram a cavar uma grande cova na beira do bosque e enterrar lá todos os mortos. Os alemães também ordenaram que o pequeno Afônia vivesse e não o tocaram”.