Tiago de Holanda*

Especial para o EM

 

O segundo romance de Graciliano Ramos, “S. Bernardo”, cujo lançamento completa 90 anos em 2024 (a publicação é de 1934), costuma figurar na lista das melhores obras da literatura brasileira. Uma opinião dominante na crítica especializada é a de que o redator (fictício) e protagonista da narrativa, Paulo Honório, é uma representação excepcionalmente precisa e bem construída da vontade de conquistar e preservar bens materiais. O narrador rememora os atos com que, após acumular dinheiro, torna-se o poderoso dono de uma fazenda homônima ao romance.


No clássico ensaio “Ficção e confissão” (1955), provavelmente o mais citado dos estudos dedicados a Graciliano, o crítico literário Antonio Candido considera que Paulo Honório, embora descubra em si fissuras pelas quais “penetra uma ternura engasgada e insuficiente”, é um “verdadeiro homem de propriedade”, em quem o desejo de possuir é “uma disposição total do espírito, uma atitude geral diante das coisas”.


De acordo com tal descrição, a vontade de domínio gera, entre outras consequências, o ciúme do protagonista pela esposa, Madalena, cuja bondade em relação às pessoas que trabalham na fazenda choca-se contra o brutal proprietário. Aos olhos deste, os funcionários são “simples autômatos, peças da engrenagem rural”, registra Candido. O ensaio “Ficção e confissão” foi e continua central para que predomine, na produção crítica, a ideia de que Paulo Honório se unifica como “homem de propriedade”.


Essa leitura tradicional, porém, não se sustenta diante de “O livro agreste” (2005), trabalho no qual o professor e pesquisador Abel Barros Baptista, sem desconsiderar esclarecedores comentários de Candido, mostra que o romance é mais complexo do que se costuma pensar.

 



 

Baptista percebe a coexistência, na trajetória do personagem, de duas linhas de ação inconciliáveis, que podem ser designadas como a do domínio e a do não domínio. O crítico destaca o episódio do encontro e do casamento com Madalena: quando se interessa pela futura esposa, o fazendeiro é movido por uma causalidade que, ininteligível a ele, não obedece ao assumido propósito de encontrar uma conveniente preparadora de herdeiro.


Além disso, o posterior ciúme em relação a Madalena “não apenas não decorre do sentimento de propriedade nem resulta da vontade de domínio absoluto sobre terras e gentes, como se torna até incompatível com ambos”, observa Baptista.

 

Compreende-se, logo, que o ciúme concorra para a derrocada do proprietário. No percurso de Paulo Honório, resume o crítico, “a energia e a determinação no sentido de cumprimento da finalidade que se assinala são desviadas e mobilizadas por uma força obscura que o leva ao desastre”. Aqui vai ser desenvolvido um ponto que Baptista apenas sugere: a dicotomia entre domínio e falta de domínio complica-se quando se observam elementos que, no trajeto do protagonista, expõem associações – não uma simples oposição – entre ambas as linhas.

 

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Fitos vacilantes


Ao confrontar os capítulos 1 e 2 do romance, Abel Baptista percebe que, no primeiro, exibe-se um Paulo Honório “que prolonga o proprietário, que projeta o livro à semelhança do domínio da terra, que manda, dispõe dos outros e se apropria do respectivo trabalho”. Já no capítulo seguinte, prossegue o crítico, emerge um narrador “levado a fazer o que não sabe fazer”. A primeira figura “falha a ação projetada”, enquanto a segunda “atua sem projeto nem decisão”. Segundo Baptista, a narração emerge dessa “progressiva perda de domínio”.


Observe-se, porém, que o primeiro Paulo Honório não indica com precisão – nem há sinais de que pudesse fazê-lo – qual seria o projeto. Este é mais ou menos aludido em expressões de sentido vago: “plano”, “enredo”, “assunto”, “as ideias confusas que me fervilhavam na cabeça”. Talvez não houvesse “plano” ou “enredo”. Desse modo, há uma gradação entre as operações de escrita tematizadas nos dois capítulos, com um conflito já instalado no primeiro, conflito que o próprio narrador insinua, no capítulo 36, ao classificar como “esquisita” a ideia de compor o livro.


Baptista demonstra que o conflito se realça no capítulo 2, quando o fictício autor informa ter abandonado o (semi)projeto e acrescenta: “iniciei a composição de repente, valendo-me dos meus próprios recursos e sem indagar se isto me traz qualquer vantagem, direta ou indireta”. No mesmo capítulo, porém, alguns elementos evitam uma mera oposição entre a redação em curso e o proprietário, então rememorado em seu processo de ascensão socioeconômica.

 

Paulo Honório indica que alcançou o seu “fito na vida” e que, por ter-se orientado em direção ao fito, privou-se de conhecimentos úteis à escrita do livro. Por outro lado, o escritor e o protagonista aproximam-se por terem partido da falta, carentes de meios: o escritor diz-se ignorante “a respeito de letras”; antes de cumprir seu “fito”, o protagonista é um “sujeito que vai começar, olha os quatro cantos e não tem em que se pegue”.


Este e outros trechos apontam que Paulo Honório, para tornar-se dominante, sujeitou-se a precariedades que não dominava. O esforço por obter ou expandir a propriedade sempre dependeria do acaso, como se lê no capítulo 8:

 

“Se eles [os negócios] entram nos trilhos, rodam que é uma beleza. Se não entram, cruzem os braços. Mas se virem que estão de sorte, metam o pau: as tolices que praticarem viram sabedoria”. Portanto, a propriedade teria uma causalidade que nenhum proprietário dominaria e que, embora não colocasse em perigo o funcionamento geral do sistema-propriedade, poderia demitir proprietários específicos.


Ademais, o “fito na vida” não abrange toda a vida. O narrador diz desconhecer várias partes do seu próprio passado (ver o capítulo 3). O “fito” parece definir-se gradual e casualmente. Paulo Honório lembra que “pensava em ganhar dinheiro”, enunciado que se encadeia a fatos não controlados pelo personagem.

 

Este, posteriormente, “cansado daquela vida de cigano”, decide estabelecer-se em Viçosa e adquirir a fazenda. O texto não justifica a decisão, a qual não necessariamente resulta do pensamento de “ganhar dinheiro”. Quando Paulo Honório direciona-se para seu “fito” segundo um motor não identificado, talvez a falta de domínio seja sobreposta, ocultada, disfarçada, pela linha do domínio, mas esta, permanecendo “baseada” naquela, estaria sempre ameaçada, não garantida.

 

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Crise permanente


No percurso do protagonista, a relação com Madalena (re)ativa a ameaça: a falta de domínio retorna, transformada, opondo-se ao domínio que a mantinha sob controle. O marido é instado – e insta a si próprio – a recriar-se, assim como antes se recriou ao adotar os propósitos de ganhar dinheiro e de apossar-se da fazenda; e assim como continuou a recriar-se sem abandonar a linha da propriedade, revelando que esta abrange direções divergentes.

 

Em sua biografia, Paulo Honório não somente se desvia do que se esperaria de alguém pobre (pois transforma-se em patrão), mas também teria agido como proprietário inabitual: “Como meus planos eram volumosos e adotei processos irregulares, as pessoas comodistas julgaram-me doido e deixaram-me em paz” (capítulo 8).


No entanto, as referidas recriações não são simétricas: não é do mesmo modo que se transita do não domínio para o domínio, deste para aquele ou, ainda, entre direções internas a uma mesma linha. A propriedade, em sentido geral, abriga uma espécie de imprevisibilidade que a preserva, que pode ameaçá-la apenas relativamente.

 

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Já a relação Madalena-Paulo Honório articula outra espécie de imprevisibilidade, que ataca a propriedade e que esta, por meio de seus representantes, não consegue detectar – como acontece no episódio do casamento –, ou que esta talvez possa mais ou menos detectar, implicitamente, somente após o desastre – como o narrador no capítulo 2, ao indicar o início repentino da escrita. Na relação com Madalena, Paulo Honório busca recriar-se e impedir tal recriação, continuar no rumo pretensamente unitário do proprietário.


Nas últimas páginas da narrativa, Paulo Honório perde seu passado ao mesmo tempo em que pretende explicá-lo, dominá-lo. Fornece o que Baptista chama de “interpretação de recurso, isto é, que suprime a falta de uma interpretação consistente”: “a autocrítica de Paulo Honório resvala para isto: se não tivesse feito o que fiz, nada teria acontecido”.

 

O narrador não reconhece que o desastre é acarretado pela existência, na ação do protagonista, de uma linha não correspondente à propriedade e, mais que isso, de uma coexistência de linhas incompatíveis. O texto fica suspenso, limitado a reafirmar que algo deu errado. A escrita do romance tematiza um mundo rompido – um não organizável com base no “fito na vida” –, no qual ela se desencadeia e permanece.


* Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da UFMG, com uma tese sobre a obra de Graciliano Ramos

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