Angústia”, o terceiro e o melhor romance publicado por Graciliano Ramos, em 1936, depois do rejeitado “Caetés” (1933) e do bem-sucedido “S. Bernardo” (1934). É um dos primeiros livros do escritor publicado por outra editora após toda a sua obra entrar em domínio público, em 1º de janeiro deste ano, quando a Record perdeu a exclusividade dos direitos autorais.

 

A história metalinguística do desajustado protagonista Luís da Silva chega ao mercado pela Todavia com bela capa, prefácio do professor da Universidade de São Paulo Thiago Mio Salla – responsável por organizar a nova coleção da editora dedicada ao autor alagoano – e posfácio inédito em livro, segundo a editora, de Antônio Candido, o maior crítico literário do país. E também pela Companhia das Letras (selo Penguin).


Luís da Silva é o narrador de sua própria sina. Aos 35 anos, é funcionário público em Alagoas, está sempre de mal com a vida e sob um fluxo de consciência frenético. “Vivo agitado, cheio de terrores, uma tremura nas mãos, que emagreceram, as mãos já não são minhas: são mãos de velho, fracas e inúteis. Impossível trabalhar”, reflete Luís, que também escreve artigos por encomenda para um jornal.


Saído do interior de Alagoas ainda adolescente e já órfão de pai, ele se estabelece em Maceió nos anos 1930. Passa a morar numa pensão enquanto exerce sua função de servidor público. Sua vida medíocre é transformada quando conhece e se apaixona por Marina, uma jovem vizinha.

 



 

Ela atende aos apelos de sua paixão, que se desenvolve no fundo do quintal, e os dois chegam a quase marcar o casamento. Luís entrega a ela suas economias para fazer o enxoval, mas a moça logo é seduzida pelo bon-vivant Julião Tavares, filho de um comerciante rico, que a engravida e depois se desinteressa por ela. Ao ter sua paixão vilipendiada, desesperado, Luís trama sua vingança.


Diferentemente da trama linear dos dois romances anteriores, em “Angústia” a narrativa se desdobra em dois tempos, o cronológico e o psicológico do protagonista, que transformam o que seria uma simples história melodramática numa trama sombria, que mescla realidade e fantasia no mundo de Luís, e vão conduzindo o leitor ao clímax do premeditado assassinato de Julião.

 

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Entre os devaneios para compensar sua baixa autoestima também está a ambição fracassada de ser escritor, mais um desajuste na sua malfadada existência, como fica explícito no trecho a seguir, após descobrir que Marina foi abandonada:

 

“Eu fervia de raiva. Se tivesse encontrado Julião Tavares naquele dia, um de nós teria ficado estirado na rua. Alguns dias depois achava-me no banheiro, nu, fumando, fantasiando maluqueiras, o que sempre me acontece. Fico assim duas horas, sentado no cimento. Tomo uma xícara de café às seis horas e entro no banheiro. Saio às oito, depois das oito. Visto-me à pressa e corro pra repartição. Enquanto estou fumando, nu, as pernas estiradas, dão-se grandes revoluções na minha vida. Faço um livro, livro notável, um romance. Os jornais gritam, uns me atacam, outros me defendem. O diretor olha-me com raiva, mas sei perfeitamente que aquilo é ciúme e não me incomodo. Vou crescer muito. Quando o homem me repreender por causa da informação errada, compreenderei que se zanga porque o meu livro é comentado nas cidades grandes. E ouvirei as censuras resignado. Um sujeito me dirá: – Meus parabéns, seu Silva. O senhor escreveu uma obra excelente. Está aqui a opinião dos crfticos”.


'Não confiável'

 

No prefácio de “Angústia', Thiago Mio Salla já adverte o leitor de que está diante de um narrador não confiável, aliás os protagonistas e demais personagens dos livros de Graciliano não têm empatia com a maioria dos leitores. Caso de Paulo Honório em “S. Bernardo” e de João Valério em “Caetés”.

 

A exceção é o sofrido Fabiano em “Vidas secas”, este sim, humanizado, conta a solidariedade do leitor. “Luís da Silva afirma que dificilmente podia 'distinguir a realidade da ficção' e questiona se não estaria 'tresvariando'. Estamos, desde o início, diante de um narrador não confiável, lacunoso, muitas vezes delirante.

 

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Em meio a seu crescente estado alucinatório, num mundo alucinado, desprovido de sentido, a narrativa faz adensar uma névoa de fantasia que cumpre ao leitor desvendar em meio aos desvãos do texto”, analisa Mio Salla.


Por essas e outras características, Salla aponta as qualidades da narrativa de Luís da Silva. “'Angústia' é a obra mais ousada, vanguardista, ambiciosa [de Graciliano], na qual levou às últimas consequências procedimentos e técnicas colocados em prática nos títulos anteriores, 'Caetés' e 'S. Bernardo'. Novamente estamos diante de um narrador confessional em primeira pessoa que se assenhora da narrativa, fazendo com que tudo gire em torno dele, do relato de sua experiência. Mais uma vez, há a encenação do ato de escrita por parte de um protagonista anti-herói, o que resulta na chamada 'construção em abismo', em que se desdobra de modo especular a tematização do livro dentro do livro, em meio a uma prosa que procura unir introspecção e crítica social”, analisa Mio Salla.


“Angústia', no entanto, se diferencia (e muito) de sua literatura anterior, sobretudo de 'S. Bernardo', por um elemento-chave: a superabundância. Há aqui o privilégio para a apresentação da mente torrencial do narrador, fazendo com que se esfumacem a linearidade e objetividade. Tais elementos, por sua vez, dão lugar a digressões, repetições, entrelaçamentos de pessoas e atos vivenciados em diferentes planos e temporalidades”, avalia também o professor da USP.


Crítica


Outra curiosidade de “Angústia” é a análise da obra feita em dois tempos distintos por Antonio Candido, que, inicialmente, não gostou.

 

Logo após a publicação, o crítico definiu o romance como “defeituoso” e “excessivo” que “contrasta com a discrição e o despojamento dos anteriores”.

 

“Tenho a impressão que 'Angústia' será relegado para segundo plano pela próxima geração de críticos e leitores. Quinze anos depois, entretanto, Candido revê sua crítica e exclui essa previsão sobre o fracasso de “Angústia”.

 

No ensaio “Os bichos do subterrâneo”, ele se refere ao terceiro romance de Graciliano como a mais complexa do escritor e exalta sua grandeza.


“Angústia” foi lançado quando Graciliano Ramos estava na prisão, em 1936. Muito autocrítico com seu trabalho, o autor alagoano, a quem jamais alguém pode dizer que tenha falsa modéstia, também não poupou “Angústia”. Em várias ocasiões chamou “Caetés” e “S. Bernardo” de “porcaria.

 

Com o terceiro romance não foi muito diferente. Em “Memórias do cárcere” ele conta: “Enfim, o romance encrencado veio a lume (…) Minha mulher apareceu com alguns volumes. Guardei um e distribuí o resto na sala da enfermaria e na capela. Mas logo me arrependi desses oferecimentos”.

 

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Ele cita os erros de editoração e datilografia da primeira edição e também a impressão da psiquiatra Nise da Silveira, que também estava na prisão.

 

“Nise esforçava-se por mostrar na minha narração capenga belezas que eu nem de longe percebia. Eneida [outra detenta] saiu do cubículo e avizinhou-se de mim, pálida, os olhos fundos: 'Li o seu romance de cabo a rabo e não dormi um instante, apanhei uma insônia dos diabos. Pavoroso'. Essas manifestações me surpreenderam, mas a princípio julguei-as amabilidades. Pouco a pouco moderei o juízo severo e cheguei a supor que a obra, apesar de tudo, causava interesse e roubava o sono das pessoas”.


Assim era o rigoroso Graciliano com sua escrita. O leitor que ainda não leu sua obra ou teve pouco contato com ela não deve se impressionar com essa austeridade. Pelo contrário, esse rigor de chamar a própria obra de “porcaria” era garantia de qualidade. Afinal, seus romances estão entre os melhores da literatura brasileira.

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