“Não me perguntaram nada. Evidentemente não me prenderam para averiguações. Prenderam-me para que eu me calasse. (…) Não me vendi, e isto me dava uma sensação agradável. Não me vendi, e isto me bastava para me reconciliar comigo mesmo. (…) “Não me interessava a política, e sim o homem, a sua miséria ou a sua grandeza, a sua vileza ou a sua nobreza.”

 

Estas são reflexões de Graciliano Ramos sobre “Memórias do cárcere”, autobiografia dos 317 dias – entre de 3 de março de 1936 e 13 de janeiro de 1937 – em que esteve preso sem qualquer acusação ou processo formal pelo governo repressor de Getúlio Vargas, iniciado com a tomada de poder em 1930 e que culminou com a ditadura do Estado Novo entre 1937 e 1945.


Mesmo inacabado – o escritor alagoano morreu sem escrever o último capítulo – o livro, que também pode ser lido como primorosa obra literária, inclusive uma das mais importantes de toda a literatura brasileira –, sete décadas após a sua publicação, segue ecoando, dos pontos de vista histórico e humanista, como retrato de uma época conturbada do país e também contra a intolerância e a estupidez inerentes à condição humana. Consolida o talento literário e o realismo social do autor já revelados em romances anteriores – “S. Bernardo”, “Angústia” e “Vidas secas”, todos escritos e lançados na década de 1930.


A origem de “Memórias do cárcere” está na prisão arbitrária de Graciliano Ramos em Maceió como diretor de Instrução Pública de Alagoas, em tese, por suspeita por ser “comunista”. Na verdade, ele só se filiou ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) em 1945, no ocaso da ditadura Vargas.

 

Na primeira metade do século 20, grande parte da intectualidade brasileira aderiu ao comunismo, seja como militante ou simpatizante, devido à insatisfação crescente com o capitalismo excludente e às promessas de justiça social da revolução comunista na Rússia e da recém-criada União Soviética. A desilusão para muitos veio a partir de 1953, quando Josef Stálin morreu e foram escancaradas as atrocidades cometidas pelo seu regime ditatorial contra os próprios aliados e o povo russo.

 




Prisão sem acusação


“Memórias do cárcere” é dividido em quatro partes. A primeira conta o trajeto de Maceió para o Rio. A segunda e a terceira relatam a terrível rotina em dois presídios na Ilha Grande, em Angra dos Reis, e a última na Casa de Correção, no Rio. Durante dez meses, conviveu com presos políticos e outros detentos por crimes diversos.

 

Mas só começou a escrever “Memórias do cárcere” dez anos após a sua libertação. No período em que esteve preso lançou “Angústia”, a obra que o consolidou como escritor respeitado de crítica e público e que culminaria ainda com o seu livro mais popular – “Vidas secas” – , e com o próprio “Memórias do cárcere”.


O que impressiona de imediato no início da leitura das mais de 650 páginas de “Memórias do cárcere” é o caráter absurdo e ilegal da prisão. Não é exagero fazer as primeiras analogias com duas outras grandes obras literárias do século 20: “O processo”, de Franz Kafka, e “O estrangeiro”, de Albert Camus.

 

No primeiro, o protagonista Josef K. é preso numa manhã qualquer sem saber o motivo em meio a um mundo tomado pela burocracia. No segundo, o protagonista Meursalt, após cometer um assassinato banal, vai a julgamento e desdenha completamente de sua situação porque não vê razão para se defender. Tanto faz se é culpado ou não.

 

Leia: Wander Miranda: 'Graciliano é exemplo de dignidade pessoal e ética intelectual'


Graciliano também não sabe por qual motivo está preso e não vê razão para se defender, torna-se indiferente diante da realidade bruta. Defender-se de quê? Qual a acusação contra ele. Não há depoimento, não há processo formal, nada. O que sabe são os comentários aleatórios de que é “comunista”.

 

“Não me sentia revoltado. A revolta pressupõe um sentimento de justiça, e eu perdera até isso. (...) Não me arrependia de nada, não me queixava de ninguém. A culpa era minha, evidentemente. Devia ter-me conformado com a ordem estabelecida, aceitado as coisas como elas eram.”

 

Ele se resigna, porque não se considera melhor do que ninguém, se solidariza com os demais detentos, reconhecendo a dignidade que o Estado e a sociedade negam. “Não me considerava superior a nenhum daqueles infelizes. Talvez fosse pior do que eles. Eram criminosos, mas eu era um inútil”, reflete o prisioneiro Graciliano.

 

Leia: Em 'Angústia', Graciliano conta a história de um homem atormentado


Outra reflexão curiosa: “Indivíduos tímidos, preguiçosos, inquietos, de vontade fraca habituam-se ao cárcere. Eu, que não gosto de andar, nunca vejo a paisagem, passo horas fabricando miudezas, embrenhando-me em caraminholas, por que não haveria de acostumar-me também? Não seria mau que achassem nos meus atos algum, involuntário, digno de pena. É desagradável representarmos o papel de vítima. Coitado! É degradante. Demais estaria eu certo de não haver cometido falta grave? Efetivamente não tinha lembrança, mas ambicionara com fúria ver a desgraça do capitalismo.”

 

Outra característica notável de “Memórias do cárcere” é que em nenhum momento Graciliano cita Getúlio Vargas nem manifesta desejo de vingança por sua prisão injusta, mas cita o “pequenino fascismo tupinambá” e lembra que o governo vigente não censura livros, mas deixa o escritor sem vontade de escrevê-los.


Saúde precária


A resignação permeia toda a obra, enquanto Graciliano vai relatando sua rotina de degradação, desde o porão fétido do navio que segue para o Rio até as prisões por onde passou, entre intelectuais e criminosos comuns.

 

O mais grave dos problemas é sua saúde precária, pois não consegue digerir a péssima comida, fica dias ou semanas sem comer e se agarra ao aguardente e, principalmente, aos incontáveis maços de cigarro para suportar o caos.

 

Leia: "Livro 'Vidas secas' pode representar a humanidade", disse Graciliano

 

Em todos esses ambientes vê o pior da humanidade, celas imundas e infestadas de insetos, a miséria, a corrupção dos detentos e dos guardas, a decadência física e moral, a sevícia e o estupro naturalizados, a morte indigente e banalizada.


“Exposição humilhante era a sórdida latrina, completamente visível. Sobre o vaso imundo havia uma torneira: recorreríamos a ela para lavarmos as mãos e o resto, escovar os dentes. As dejeções seriam feitas em público. A ausência de porta, de simples cortina, só se explicava por um intuito claro da ordem: vilipendiar os hóspedes. Nem cadeiras, nem bancos, o inteiro desconforto, o aviltamento, por fim a indignidade”, pensa Graciliano.


E mais: “Os gritos daquela noite era de um garoto violado. Essa declaração me estarreceu. Como podia suceder tal coisa sem que atendessem aos terríveis pedidos de socorro? Muitos guardas eram cúmplices, ouvi dizer, e alguns vendiam pequenos delinquentes a velhos presos corrompidos – vinte, trinta, cinquenta mil-réis conforme a peça. (…) Na ausência de mulheres, consente-se o homossexualismo tacitamente.”


Por outro lado, Graciliano relata a solidariedade que recebeu quando esteve à beira da morte por inanição. “Descendo muito, fraco e inútil, recebi favores que não poderia retribuir. Necessitamos conhecer a miséria para descobrir ações desinteressadas”, reflete o escritor ao manifestar seu instinto de humanidade tão presente em suas obras.


Olga Benário


A prisão de Graciliano era preocupação constante de sua mulher, Heloísa Ramos, e de amigos intelectuais, como o escritor carioca José Lins do Rêgo, autor do clássico “Menino de engenho”. A esposa, além de visitá-lo frequentemente – o que inicialmente o irritava porque ele temia expô-la à degradação humilhante e perigosa no cárcere – o surpreendeu ao percorrer várias instâncias políticas para tentar libertá-lo. Incomodava-o também as iniciativas do amigo.

 

“José Lins procurava militares e políticos, mandava cartas a figurões, empenhava-se em favorecer-me com simpatias várias indeterminadas. Essa interferência podia causar desgostos, originar suspeitas e afligia-me a ideia de prejudicar alguém. Na prisão, Graciliano conviveu com sua conterrânea Nise da Silveira, médica psiquiatra denunciada por uma enfermeira como “comunista”, como ele relata no livro. Mas uma das descrições mais angustiantes de “Memórias do cárcere” é sobre Olga Benário, mulher do líder comunista Luís Carlos Prestes, entregue grávida ao regime nazista pelo governo Vargas e assassinada em câmara de gás na Alemanha.


No capítulo 20 da quarta parte da obra, Graciliano conta uma parte sombria da História do Brasil. “Uma noite, chegaram-nos gritos medonhos do Pavilhão dos Primários, informações confusas de vozes numerosas. Aplicando o ouvido, percebemos que Olga Prestes e Elisa Berger iam ser entregues à Gestapo: àquela hora tentavam arrancá-las da sala 4. As mulheres resistiam, e perto os homens se desmandavam em terrível barulho. Tinham recebido aviso, e daí o furioso protesto, embora a polícia jurasse que haveria apenas mudança de prisão. (…) Sentado na cama, pensei com horror em campos de concentração, fornos crematórios, câmaras de gases. Iriam a semelhante miséria? A exaltação dominava os espíritos em redor de mim. Brados lamentosos, gestos desvairados, raiva impotente, desespero, rostos convulsos na indignação. Um pequeno tenente soluçava, em tremura espasmódica: – Vão levar Olga Prestes. (…) Olga Prestes e Elisa Berger nunca mais foram vistas. Soubemos depois que tinham sido assassinadas num campo de concentração na Alemanha".


Lembranças sem fim


Graciliano não concluiu “Memórias do cárcere”, faltou o último capítulo. “Não há problema. É tarefa de apenas uma semana”, ele disse ao filho Ricardo Ramos, quando indagado sobre o desfecho da obra. O escritor postergou esse trabalho porque já estava envolvido em escrever “Viagem”. O leitor curioso fica sem saber como foi exatamente a sua libertação após 317 dias sem acusação ou processo formal.


Graciliano morreu em 20 de março de 1953, aos 60 anos, consumido por um câncer de pulmão, possivelmente causado pelo cigarro, considerando-se os incontáveis maços que fumou ao longo da vida e que o ajudaram a resistir na prisão, onde sempre mantinha estoque disponível. O escritor baiano Jorge Amado resume bem a relevância da obra no prefácio de “Viagem” (Livraria Martins Editora – 1970): “O livro que nos dá a sua justa medida de homem, de um homem muito além do comum, é 'Memórias do cárcere', ao qual a alta qualidade literária imortaliza um depoimento terrível sobre uma época espantosa de nossa vida nacional.”

compartilhe