Jon Fosse

Tradução de Leonardo Pinto Silva

 

EU NÃO SAIO MAIS DE CASA, uma angústia tomou conta de mim, e não saio mais de casa. Foi neste verão que a angústia tomou conta de mim. Reencontrei o Knut, não o via fazia uns dez anos, provavelmente. Eu e o Knut estávamos sempre juntos. Uma angústia tomou conta de mim. Não sei o que é, mas a angústia faz minha mão esquerda doer, os dedos doem. Não saio mais de casa. Não sei por quê, mas há meses nem sequer ponho o pé fora da porta. É só essa angústia. Foi por isso que decidi escrever, vou escrever um romance. Tenho que fazer alguma coisa. Essa angústia está ficando insuportável.


Se eu escrever, talvez ajude. Foi neste verão que a angústia tomou conta de mim. Reencontrei o Knut. Ele casou, teve duas filhas. Quando éramos pequenos, eu e o Knut sempre estávamos juntos. E o Knut foi embora. Chamei por ele, mas o Knut simplesmente foi embora. Uma angústia tomou conta de mim. Ele me deu as costas. Eu não sabia o que dizer, só vi o Knut parado ali, na calçada, e então ele atravessou a rua. Não o via desde então. O Knut, eu não o via fazia uns dez anos, e neste verão o reencontrei. A mulher do Knut. Uma capa de chuva amarela. A jaqueta jeans. Os olhos dela. O Knut é professor de música, veio para cá de férias. Tenho mais de trinta anos e minha vida não deu em nada. Moro aqui, com a minha mãe. Foi neste verão que a angústia tomou conta de mim.

 

Nunca escrevi nada por vontade própria, a maioria das pessoas provavelmente já escreveu, cartas, muitos podem ter escrito até poesia, mas eu jamais escrevi coisa alguma. Me dei conta de que talvez eu pudesse escrever. Precisava fazer alguma coisa, a angústia estava grande demais. De repente me ocorreu que talvez devesse começar a escrever, foi depois que a angústia tomou conta de mim, eu tinha que fazer alguma coisa, tinha que me livrar dessa angústia. Na verdade, até então eu nunca tinha pensado na possibilidade de escrever. Não antes de essa angústia aparecer. Repetidamente a angústia foi tomando conta de mim, sobretudo à noite, antes era a melhor parte do dia, mas agora as noites são atribuladas, muito atribuladas.

 



 

Tive que inventar alguma coisa e decidi escrever. Talvez escrever ajude, mantenha a angústia afastada. Não sei. Mas essa angústia, para a qual não estou preparado, talvez ela diminua se eu escrever. Talvez tudo mude. Seja como for, escrever talvez possa manter a angústia sob controle durante algumas horas. Não sei. Porque essa angústia é insuportável, por isso quero escrever este romance. Estou sentado aqui. Sozinho. Estou aqui. É essa angústia. Estou no sótão da casa onde moro, escrevendo. Até que não me sinto tão mal agora, foi uma boa ideia começar a escrever um romance, acho que foi, embora eu mal tenha começado a escrever. A angústia é insuportável, por isso vou escrever.

 

SOBRE O AUTOR

 

Ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 2023, Jon Fosse nasceu na Noruega em 1959 e publicou o primeiro romance, “Raudt, svart”, em 1983. Com obras traduzidas para mais de 50 idiomas, escreveu contos, peças teatrais, ensaios, livros para adultos e crianças.

 

O romance “A casa de barcos”, que chega ao Brasil em edição da Fósforo, é ambientado em uma pequena cidade costeira da Noruega, próxima a um fiorde. e tem como protagonista um homem solitário e atormentado. Do mesmo autor, está sendo lançado, pela Companhia das Letras, o livro “Trilogia”, formado pelos volumes “Vigília”, “Os sonhos de Olav” e “Repouso”.

 

Ao justificar a premiação no Nobel, os organizadores afirmaram: “A condição humana é um tema central para Fosse, independentemente do gênero. A coragem do autor em se abrir para as incertezas e ansiedades da vida cotidiana está por trás do extraordinário reconhecimento de sua obra.”

 

“A casa de barcos”


De Jon Fosse
Tradução de Leonardo Pinto Silva
Fósforo
144 páginas
R$ 64,90

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