Oito de março. Dia Internacional da Mulher, a data em 2024 ganhou especial relevância histórica ao marcar a entrada de Conceição Evaristo na Academia Mineira de Letras. Primeira mulher negra a ingressar na AML, a poeta e ficcionista nasceu na favela do Pindura Saia, região Centro-sul de Belo Horizonte, e sucedeu, na cadeira de nº 40, a também ensaísta, poeta, romancista e professora Maria José de Queiroz.
O presidente da instituição centenária, Jacyntho Lins Brandão, saudou a entrada da escritora na Academia: “Minha cara Conceição, ao entrar na nossa convivência, cabe-lhe uma cadeira com 115 anos de história – e 258 anos de vivências. Eu diria que sua cadeira, a 40, deve servir de exemplo para todas as outras, por ser a única em que se pratica a equidade de gênero: são dois homens, Pinto de Moura e Affonso Pena Júnior, e duas mulheres, Maria José de Queiroz e você. Sua chegada, portanto, é de uma importância visceral para a Academia”, afirmou.
Em seu discurso, Jacyntho Brandão ainda ressaltou “o poder da literatura” e, em especial, “da escrevivência” da autora. “Com sua ficção, ela repôs o lugar onde nasceu e cresceu na nossa geografia, em especial no livro que tem o título em tudo exato de ‘Becos da memória’, em que a narradora registra como, “a cada dia perdíamos mais pontos da favela (...), o território nosso já se resumia a quase nada”.
Na saudação de boas-vindas, Antonieta Cunha também lembrou um dos livros mais marcantes da nova integrante: “Não importa se você, Conceição, fez relatos fiéis aos acontecimentos ou se neles há alguma invenção, como confessa que pode ter acontecido nas suas narrativas. Nas palavras iniciais da última edição do ‘Becos da memória’, você afirmou: “Nada do que está narrado em ‘Becos da memória’ é verdade, nada do que está narrado em ‘Becos da memória’ é mentira.” Antonieta ainda pontuo sua fala com uma citação de “Maria, Maria”, sucesso de Milton Nascimento com letra de Fernando Brant: “Você tem um notável talento para, em prosa e verso, nos comover, ao falar da dor, da alegria, da fé na vida da sua gente, de brasileiros, nossa gente, talento que poucos possuem - e esses poucos são grandes escritores.”
Leia, a seguir, a íntegra do discurso de Conceição Evaristo, acrescido por um trecho que a escritora não leu na cerimônia e cedeu ao Pensar para publicação nesta edição.
Boa noite a todas, a todes e a todos.
A minha primeira tentação é dizer: “Oi! você veio! Oi você está aí! Nossa…Ih, você veio!”. Mas não vou poder fazer isso. Então, eu gostaria que todas as pessoas do público se sentissem cumprimentadas na pessoa de quem acompanhou a minha juventude. E acompanhou num momento muito importante, num momento em que eu participava da Juventude Operária católica, e passamos por alguns momentos bem antes, quer dizer, no período da Ditadura. E de vez em quando a gente se encontra e é com muito orgulho, muita satisfação, saber que nós continuamos firmes nos nossos pensamentos, nas nossas ideologias, nas nossas crenças.
Por isso eu pediria licença para cumprimentar o público na pessoa de Diva Moreira. É o Paulo que tá do seu lado, Diva? No final dos anos 60, a gente estava aí na luta acreditando em tudo. Eu era da juventude operária católica… Diva, você também. Acho que Paulo era da Juventude Operária Católica e você era da Juventude Estudantil Católica? Mais ou menos.
Então, é um momento também de louvação à vida, porque os nossos cabelos brancos indicam que o tempo está passando, e a gente está aí firme. Bom, claro que estou emocionada, não queria transparecer isso, mas não tem como. É uma emoção muito grande também, por estar aqui as minhas irmãs e irmãos. Levantem, por favor! A Angélica teve de ir, mais o Altair, A Lourdes é a minha quarta irmã. O Altair é o sétimo? O sétimo irmão. Agora a família toda, prima, sobrinhos, primo-neto, todo mundo. Além de Macaé que está aqui na mesa.
Ai, meu Deus do céu, vai ser difícil eu começar aqui. “Casa Escrevivência”, por favor, Andreia, por favor. As editoras já foram mostradas. Angela e Isabela que têm me acompanhado nesse trabalho todo. Inclusive também com o livro, com um trabalho bem interessante sobre Escrevivência. O Itaú Social, junto com Isabela e Constância, coordenou um livro que foi publicado antes da pandemia. “Escrevivência: a escrita de nós”. Angela. você levantou com a “Casa Escrevivência”? Bom, eu gostaria…
Oh, você não levantou na hora do irmão! Levanta aí então! Ele foi levar minha outra irmã na rodoviária. Esse é o caçula, o mais novo dos meus irmãos. Eu queria mostrar muita gente, mas acho que… Muita gente que eu queria agradecer. Constância, cadê Eduardo que eu não tô vendo? Ah, tá. Eu falo que Constância e Eduardo foram e são meus garotos propagandas na UFMG.
Gente, perdão, eu queria falar de muita gente, mas de muita gente, mas… Que todas as pessoas se sintam amadas, e se sintam agradecidas. Eu vou ler um pouquinho, e vou falar muito, tá?
Bendigo os dias, bendigo o tempo, enfim. Bendigo a vida que tem me permitido entoar tantas palavras de gratidão. Agradecida estou. Palavras de agradecimento fazem sentidos, mas não dão conta de dizer de todo reconhecimento do bem que as pessoas fazem incidir sobre nós. Talvez as palavras sejam ingratas ou preguiçosas, param pelo meio do caminho e o vazio, incompletude do dizer, paira no ar. Quem escreve, conhece esse tormento, experimenta dia e noite a insuficiência da linguagem. A oralidade também padece desse vácuo, da imperfeição, da insuficiência do dizer, do falar, principalmente quando queremos explicitar os nossos sentimentos mais profundos. Mas, o falar, o dizer, traz a potência do gesto, a movência do corpo. E se estamos frente a frente com a outra pessoa, traz o vigor, a força do olhar. Nesse sentido, gostaria que cada pessoa aqui presente, e ainda, as que assistem de longe, nesse momento, encontrassem o meu olhar amalgamado ao dela, e lesse em meus olhos, a inscrição, o termo: gratíssima.
Gratíssima à Academia Mineira de Letras, que por meio de seus ocupantes e suas ocupantes, vem entendendo que o chão mineiro de palavras, mais se expande se as sementes são diversificadas em suas origens. Afirmo aqui que muito me rejubilei com a eleição de Ailton Krenak. A casa trazia aqui aquele cuja a experiência da colonização cria em nós uma condição de parentesco, pela história transversalizada dos povos indígenas e dos povos africanos e seus descendentes na formação da nacionalidade brasileira. Uma cumplicidade, mesmo que não programada, Ailton Krenak, reina entre nós. Por isso que a gente cochichou ali. Externo a minha gratidão ao presidente da casa, o acadêmico Jacyntho Lins Brandão, assim como reafirmo os meus agradecimentos ao acadêmico Rogério Faria Tavares que apresentou a minha obra para vários integrantes da casa, possibilitando primeiramente a chegada de minha escrita, ponto inicial, ponto primordial para se conhecer o sentido, o significado, e mesmo a justiça de minha candidatura.
Os agradecimentos continuam, e são extensivos aos acadêmicos e acadêmicas da Casa que votaram em mim. Agradeço a acadêmica Antonieta Cunha, companheira de trabalho de longas datas, pelos seminários e feiras literárias que tenho participado a partir dos convites dela. E agradeço a leitura, porque nem eu sabia que eu escrevia bonito assim. Agradeço e me rejubilo também pela chegada do jornalista e escritor Carlos Herculano (Lopes). Ele está? Carlos Herculano foi um dos primeiros a fazer uma matéria comigo sobre minha literatura. Não me lembro nem em que ano foi. Tem muito tempo. Boas surpresas da vida, hein, Carlos? Naquele momento nunca imaginamos que um dia estaríamos juntos na Academia Mineira de Letras.
Como meus agradecimentos são dirigidos aos fatos do passado e do presente, minha gratidão registra que no ano 2017, quando o acadêmico Ângelo Oswaldo, então como Secretário de Cultura do estado de Minas Gerais, me distinguiu como escritora premiada pelo conjunto da obra. Sabíamos que premiações visibilizam a obra e a autoria.
Ainda compreendendo que não me construo sozinha e que os acolhimentos, os esforços, as cumplicidades das pessoas me trazem, me sustentam e me colocam aqui, preciso agradecer, a equipe da Casa Escrevivência, a Editora Pallas, a Editora Malê, a Editora Mazza, e aos amigos e as amigas do Rio de Janeiro e de São Paulo, que vieram para participar desse momento comigo. Angela Danemam, Isabella Nunes, Diana Esteves, minha gratidão sempre. Ah, quero agradecer ainda, à outra editora com a qual publiquei também, aqui em Belo Horizonte, a Editora Nandyala de Íris Amâncio. Agradeço com ênfase tamanha a minha família presente, irmãos, irmãs, sobrinhas, sobrinhas netas, que estão vivenciando esse momento comigo. Primas, primos.
Deixo ainda meus agradecimentos especiais ao grupo Quilombhoje Literatura, coletivo de escritores e escritoras negras, onde publiquei em 1990 pela primeira vez. Ali rompi o meu ineditismo, depois de uma publicação rápida, de uma crônica no Diário Católico de Minas Gerais. Eu me lembro, me parece que foi em 64. Publiquei uma crônica que se chamava “Samba Favela”, e sem sombra de dúvidas, naquele texto estava a semente de “Becos da Memória”. Especial agradecimento deixo as editoras Mazza e Nandyala, primeiras editoras a colocarem minha obra na rua.
Deixo agora, com muita honra, e nomeio sempre nos meus agradecimentos ao Movimento Negro, primeiro lugar de recepção de minha obra em 1990. Foi entre os meus, entre as vozes iguais às minhas, notadamente vozes de mulheres, que se deu a recepção e a divulgação dos meus primeiros textos. Ao Movimento Negro, os meus agradecimentos de sempre.
E, ao chão mineiro, Belo Horizonte, Minas Gerais, que me deu régua e compasso, plagiando aqui, o que Gilberto Gil que diz da Bahia, sou grata, gratíssima, pela oportunidade de voltar recolhendo lembranças, que me serviram e me servem de base e de inspiração para novas histórias.
E ao voltar a Minas, território do qual nunca saí, pois, meu umbigo se encontra literalmente enterrado em algum cantinho ou lugar do Mercado Cruzeiro. Recolho as histórias, as minhas e das pessoas que ali viveram, como também recolho histórias de uma cidade que só existe em minhas lembranças, ora incertas, enfumaçadas, ora nítidas, desenhadas, contornadas por linhas objetivas, concretas. Quanto ao meu umbigo enterrado, quando nós nascíamos, minha mãe enterrava o nosso umbigo na terra. Antigamente quando o neném saia do hospital, levava, acho que quase sete dias para o umbigo cair. E se enterrava na terra, porque acho, que era uma prática também dos povos africanos. Mas existe uma questão muito séria também, diz que quando a pessoa está para morrer, ela volta para onde o umbigo está enterrado. É por isso que eu não volto para Minas. Venho e volto, venho e volto, e até porque “a gente combinamos de não morrer,” como já disse um personagem de minha invenção.
Mas hoje, tenho um motivo único, uma causa especial para voltar a essa terra que se fez matriz de minha ascendência materna, cujo princípio, sei apenas que se localiza ali na Serra do Cipó. Miinha mãe era, minha família materna era daquela região.
Volto para ocupar uma Casa que representa a excelência da literatura e da cultura mineira. Volto para ocupar a Cadeira nº 40, cujo patrono é José Teixeira da Fonseca Vasconcelos, o Visconde de Caeté, nascido em 1766, tendo falecido em 1838. Homem de cultura erudita, e como era de praxe da época, os filhos dos colonizadores iam estudar em Portugal. Depois de ter estudado matemática, filosofia natural e leis, voltou para o Brasil em 1808. Era tido como “humano, abnegado, cândido, justo, competente, patriota. Além de homem de negócios, exerceu cargos políticos de presidente da província de Minas Gerais, ocupou cargo no senado representando a província mineira e participou de comissões permanentes de comércio, agricultura, artes, estatística, colonização, catequese e saúde pública. É também patrono da Cadeira 60 do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais.
A biografia do patrono da Cadeira 40 da Academia Mineira de Letras nos revela um homem erudito, que conviveu com grandes artistas da época, brasileiros e estrangeiros, uma pessoa atuante que representava o poder político da época, ocupando lugar de comandos e de pensar a nação.
Leio a ocupação da Cadeira nº 40, cujo patrono é Visconde de Caeté, e que foi fundada pelo acadêmico Francisco Augusto Pinto de Moura, tendo como 1º sucessor Affonso Pena Junior, a presença hegemônica de homens marcando a cena cultural e política de Minas Gerais, e por que não dizer do Brasil - os homens marcam os assentos nos lugares de poder.
É, pois, com o devido respeito aos homens imortais da casa, que exalto o nome e a pessoa imortalizada da professora, doutora, ensaísta, romancista, poeta e crítica literária Maria José de Queiroz, ocupante da Cadeira 40 até novembro de 2023.
E consciente do nome e da pessoa que me antecede, me rejubilo por algumas semelhanças existentes em nossas trajetórias diferenciadas, enquanto mulheres brasileiras.
A imortal Maria José de Queiroz foi professora, mineira, nascida em Belo Horizonte em 1934. Ainda jovem, aos vinte e seis anos, conquistou a cátedra universitária, sucedendo o acadêmico Eduardo Frieiro na cadeira de literatura hispano-americana da UFMG. Doutora em Letras Neolatinas, a carreira acadêmica de Maria José de Queiróz é marcada por sua atuação em universidades americanas e europeias. Como escritora, poeta e ensaísta, nos deixou ensaios literários como ‘A Literatura Encarcerada’, ‘A Literatura do Êxtase das Drogas a Vertigem da Loucura, A Literatura e o Gozo Impuro da Comida, Os Males da Ausência ou a Literatura do Exílio e Em Nome da Pobreza, entre outras obras. Na ficção, podemos ler Maria José de Queiróz, antologia de contos como “Amor cruel, amor vingador”. No campo da poesia, ela nos oferece as obras “Livro de levitação”, “Desde longe” e o romance “Joaquina, a Filha do Tiradentes” para citar algumas de suas incursões pela ficção.
Fiquei curiosa porque normalmente, quando se fala da Inconfidência Mineira, a gente lembra o nome dos inconfidentes. Lembra também das mulheres, mas não com a mesma veemência com que se lembra do nome dos homens. E Maria José de Queiroz, ao fazer uma pesquisa sobre a filha de Tiradentes, busca fontes em Portugal. O romance de cunho histórico resgata uma figura pouco conhecida, a filha natural do mártir da Inconfidência Mineira, que a partir do episódio da Inconfidência sofre perseguições, tendo de fugir de Minas Gerais juntamente com a mãe.
Estudiosa também sobre uma realidade próxima ao seu lugar de pertença, Maria José de Queiroz debruçou sobre os estudos da língua espanhola falada na América hispânica e advertiu sobre o descuido dos brasileiros no que tange aos nossos conhecimentos sobre a América espanhola. Conduta que nos é devolvida quando o Brasil é uma incógnita para a América latina. A escritora também demonstrou interesse sobre as línguas indígenas faladas na América latina.
É interessante observar que até hoje nós brasileiros, de um modo geral, temos pouco conhecimento sobre a América latina.
Uma escritora consciente, de que a matéria prima de seu trabalho é linguagem; há um exercício profundo de Maria José de Queiróz em explorar, lapidar linguagem, a palavra, como pedras preciosas que brotam do solo riquíssimo mineiro e que não podem ser maltratadas, desprezadas e precisam ser buriladas até o infinito. Contadeira de casos ouvidos, a escritora Maria José de Queiroz seguiu multiplicando o pão de sua comunhão com a literatura, desde as pesquisas acadêmicas, às aulas dadas, às palestras proferidas, às poéticas oferecidas e deixadas para gerações futuras que encontram um manancial de escrita que ainda precisa ser bem explorado. Estudos como os de lyslei de Nascimento surgem como suportes teóricos fundamentais para o desenvolvimento de pesquisas sobre a escrita de Maria José de Queiroz. A escritora que foi aluna e substituta do professor Eduardo Frieiro da UFMG, interlocutora de Pedro Nava, leitora de Drummond e de outros literatos da época, brasileiros e estrangeiros.
Dentre a obra de Maria José de Queiroz, há uma narrativa memorialista escrita com uma sensibilidade ímpar e que traz as suas lembranças do interior da família, assim como um relato da vida acadêmica e profissional. No texto a escritora revela que a sua opção, em se enveredar pelo caminho do magistério, foi ditada pelas circunstâncias, embora tivesse um pendor para a música, escolha que ela não podia fazer no momento, em que estava vivendo.
Enquanto Maria José de Queiroz tinha um pendor para música; eu não tenho. Uma das minhas frustrações é justamente por não saber cantar nem dançar. E ao se enveredar nos estudos que culminaram com a entrada na carreira acadêmica, Maria José de Queiroz foi se sentindo cada vez mais seduzida pelos livros, pela leitura e encontra outro mundo que se faz seu, o do magistério, a qual ela se dedica.
Ao ler os relatos de Maria José de Queiroz na obra “Livro de minha mãe”, me emociono, pois, em 2022, quando a minha mãe faleceu faltando três dias para completar noventa e nove anos, também comecei a escrever um livro que se chamará “Em nome de mãe”. É uma escrita em que confundo, misturo a memória de minha mãe relatada em forma de um diário que ela escreve depois de ler Carolina Maria de Jesus. Me emociono ao cruzar minhas memórias com as de minha mãe e ao ler também as memórias cruzadas de Maria José de Queiroz. Aliás, me emociono não só nos cruzamentos de memórias de nossas mães mas também ao cruzar as minhas memórias com as memórias de minha antecessora. Quando penso nos caminhos cruzados e nos caminhos distanciados e como se dá a minha aproximação com a minha antecessora, me emociono muito.
Quando li que Maria José de Queiroz foi aluna de Eduardo Frieiro e foi substituta dele na UFMG, digo que também conheci Eduardo Frieiro, em outras circunstâncias. Talvez as meninas ali, minhas primas se lembrem. Vocês se lembram da Pié? Nossa prima. Pié foi empregada de Eduardo Frieiro, foi doméstica na casa dele. Quando eu estou aqui na Academia Mineira de Letras, me recordo, ali, onde tem a Igreja Nossa Senhora de Lourdes, na lateral da Igreja, tem um prédio construído e ao lado, tem uma única casa. Tenho quase certeza que aquela única casa..., Mazza, você conheceu, era a casa de Etelvina Viana… Era?
Etelvina Vianna, Alda Vianna e Maria Helena Vianna. Essas três senhoras, a minha família trabalhou durante anos para essas senhoras. E a minha tia Laurinda, a que me dá uma biblioteca inteira, ela trabalhava para dona Etelvina Vianna. Essa senhora foi diretora da Biblioteca Pública de Minas Gerais. E creio que foi ela que instituiu o curso de biblioteconomia na UFMG. Foi?
Dona Etelvina foi quem levou a minha tia para trabalhar na Biblioteca Pública, ali na Praça da Liberdade. Durante a manhã essa minha tia trabalhava na casa da Dona Etelvina e de tarde ia para biblioteca, até o momento que essas irmãs entenderam que a minha tia já teria condições de sobreviver sozinha.
Quando a minha tia foi trabalhar na Biblioteca Pública de Minas Gerais, ganhei uma biblioteca inteira. Minha tia trabalhava lá, essa condição minha enchia de orgulho. Eu podia entrar a hora que eu quisesse, pegava o livro, os livros. Diva Moreira trabalhou com a minha tia Laurinda na biblioteca. Eu pegava o livro, vinha para a Praça da Liberdade e ficava horas e horas lendo, voltava, entregava o livro e pegava outro novamente e levava para o Cruzeiro.
A minha mãe também trabalhou para a família Lara Resende assim como trabalhou para Alaide Lisboa de Oliveira autora dos livros: “A bonequinha preta” e “O bonequinho doce”.
Houve um momento na escola, no Barão Rio Branco, que eu dancei ‘Bonequinha preta’. O pai de Alaíde Lisboa e de Henriqueta Lisboa, doutor João Lisboa, foi padrinho de minha irmã mais velha, Marinês, justamente com a irmã de Etelvina Vianna, com a dona Alda Vianna. Então, tenho dito que o destino da literatura me persegue de alguma forma desde as entranhas das mulheres subalternizadas de minha família. E são essas mulheres que me colocam aqui.
Como gosto de ficção, gosto de imaginar a minha mãe olhando os livros de Alaíde, a minha prima Pié olhando os livros de Eduardo Frieiro e desejando, desejando.... Tenho pensado no que temos dito ultimamente, o futuro é ancestral. Talvez essas mulheres tenham desenhado, como o pai de Macaé, que foi servente da Secretaria de Educação de Minas Gerais. Talvez o pai dela tenha sonhado um dia para ela. Ele contínuo da Secretaria da Educação e a filha dele, anos e anos mais tarde seria Secretária de Educação do Município de Belo Horizonte, e depois Secretaria de Educação do Estado de Minas Gerais. E hoje, deputada.
Estar aqui é sonhar um futuro para que as novas gerações possam estará aqui também. É sonhar um futuro não só para as crianças negras. Está aí e um futuro não só para as crianças negras, também para as crianças brancas, para os jovens brancos, porque acredito muito que uma geração futura possa criar outras formas de relações sociais, outros modos de pensar o Brasil.
Então, estar aqui na Academia Mineira de Letras, fico muito grata. Agradeço o acolhimento de todas as pessoas, agradeço a confiança que vocês estão depositando em mim, mas não quero ser só representatividade, quero marcar a nossa presença aqui na Academia Mineira de Letras. Representatividade é pouco. Outro dia estava escutando a escritora Ana Maria Gonçalves dizer: não queremos só representatividade, queremos ser presença, ser presença. Queremos marcar nossa presença, queremos impregnar a casa, talvez com novas maneiras de pensar a literatura, de ler a literatura e de reconhecer a literatura. Pode ser petulância da minha parte, mas nós não somos enfeite. Creio que estamos aqui também pra pensar e para colaborar com a nova Academia.
Fico muito feliz. Essa parte eu não quis ler, porque queria falar realmente ao sabor da emoção. Sei que de onde a minha mãe estiver, ela deve estar escutando e entendendo. Outro dia ouvi o acadêmico Rogério Tavares dizer, “a casa de Henriqueta Lisboa...” E eu fiquei pensando muito nesta nomeação, “a casa de Henriqueta Lisboa… Hoje estou na casa de Henriqueta Lisboa. Estou falando de Henriqueta Lisboa, porque foi alguém que faz parte da história da minha família. E fico pensando… Quando a minha mãe dizia: “a casa Dona Henriqueta Lisboa”, minha mãe estava dizendo “a casa da patroa dela”. Então é com muito orgulho, é com muita alegria, é com muita vontade de marcar a Casa de Henriqueta Lisboa, porque não é uma casa que eu me refiro como a casa de minha patroa, como a minha mãe se referia. Hoje eu me refiro à Casa de Henriqueta Lisboa como a Casa que eu estou para dialogar, para trabalhar com vocês.
“Escrever é uma maneira de sangrar”
Leia trecho inédito do discurso da posse de Conceição Evaristo na AML
Ao celebrarmos o Dia Internacional da Mulher, alongo o meu discurso contando uma história local de mulheres. Um fato simples, histórias do cotidiano de mulheres pobres, descendentes de povos africanos escravizados no Brasil e que me provoca em nossa escrevivência. Esta história se passa nos anos 30, no interior de Minas Gerais.
Minha Tia Lilia me contava que houve um tempo em que os fazendeiros da localidade onde ela morava, na Serra do Cipó, os fazendeiros da localidade e adjacências não queriam dar trabalho para as mulheres, alegando que o trabalho dos homens rendia mais. As mulheres resolveram, então, trabalhar em mutirão. Juntas aravam a terra, plantavam, cuidavam da roça, colhiam. Etc. O que aconteceu? O trabalho das mulheres passou a render tanto quanto, ou mais, do que o dos homens. Os fazendeiros resolveram, então, dar trabalho a essas mulheres.
Tenho apresentado sempre essa narrativa para pensarmos uma luta das mulheres que nasce do cotidiano. Essa tática de sobrevivência de mulheres descendentes de africanos, lembrando inclusive que os anos 30 estavam apenas a 50 anos após a assinatura da Lei Áurea, revela uma organização coletiva para enfrentar o poder mandatário dos fazendeiros. Esse feito faz parte da luta das mulheres no Brasil, entretanto, por não ter sido escrito, não aparece como parte de uma luta empreendida pelas mulheres.
E referenciando o que não está escrito e o que está, reafirmo meu desejo de celebrar a memória imortalizada de Maria José de Queiroz, apropriando-me de alguns versos dela para me exprimir, não como ela, mas como eu mesma a partir de uma vivência de mulher, marcada pela experiência não só de gênero, mas étnica e social também. Por isso, digo: “Minas soluça em todos nossos remorsos”. E acrescento uma fala de minha autoria: “Escrever é uma maneira de sangrar”. E pode ser ainda uma “doce e suave vingança”.