Que mistério (ainda) tem Clarice? Com a vida e a obra esmiuçadas em livros, documentários, peças de teatro e exposições, a escritora Clarice Lispector (1920-1977), ucraniana criada no Brasil, está no foco, agora, de palavras, pensamentos e olhares de quem a admirava, a conheceu profundamente ou conviveu com a autora de “Perto do coração selvagem”, “A hora da estrela” e “Água viva”. Reunindo 65 depoimentos de A a W – de Ana Maria Machado a Walmir Ayala –, está sendo lançado “Clarice na memória de outros” (Autêntica Editora), organizado por Nádia Battella Gotlib, a mesma autora de “Clarice: uma vida que se conta”. A cada página, percepções, histórias, revelações.


No registro do psicanalista e escritor belo-horizontino Hélio Pellegrino (1924-1988), Clarice “era realmente uma figura extraordinária”, que não conseguia ser convencional. “Como era uma personagem perturbadora, as pessoas não sabiam bem como levar a Clarice. E isso dividia um pouco as pessoas, quer dizer, ou as pessoas tinham por ela uma admiração exaltada e então estavam com ela de uma maneira assim incondicional, ou então as pessoas se retraíam”.


Também de BH, o jornalista e escritor Humberto Werneck narra uma entrevista com a escritora para o “Suplemento Literário”, do “Minas Gerais”, quando “não sabia ainda dos espinhos que Clarice costumava eriçar no trato com desconhecidos”.

 



 

Admiradores confessos desde os tempos da juventude em Santo Amaro (BA), os irmãos Caetano Veloso e Maria Bethânia se renderam cedo aos encantos da magistral escritora. Para o cantor e compositor baiano, ler os textos de Clarice foi encontrar o “moderno”, enquanto a cantora conta uma história. “Enquanto lia Clarice, as canções começaram a brotar em nosso grupo lá na Bahia. Capinan (José Carlos Capinan, poeta baiano) escreveu com Caetano ‘Que mistério tem Clarice’, que não era uma referência diretamente a ela, mas, ao mesmo tempo, para mim, era. Era uma brincadeira de Capinan com Caetano, não sei. Mas para mim tem a ver – ‘Que mistério tem Clarice’.”


Na coletânea de 504 páginas organizada por Gotlib, professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP) e uma das principais pesquisadoras da vida e obra de Clarice Lispector, há registros, em sua maioria inéditos, como cartas, fragmentos, entrevistas, anotações, artigos, poemas e crônicas de pessoas que tiveram diferentes modos de relacionamento com a escritora: familiares, amigos, admiradores, jornalistas, editores, pesquisadores, artistas plásticos, músicos, diplomatas, atores, escritores e críticos.


Há também fotos, a exemplo da imagem que registra um encontro de escritores durante a 22ª Feira do Livro de Porto Alegre (RS), quando esses participantes, incluindo Clarice, assinaram manifesto contra a ditadura militar no Brasil.

 

Quem fala sobre ela


No livro “Clarice na memória de outros”, há depoimentos de Ana Maria Machado, Anita Levy e Israel Averbuch, Antonio Callado, Antônio Carlos Villaça, Armindo Trevisan, Autran Dourado e Maria Lúcia Autran Dourado, Benedito Nunes, Boris Asrilhant, Bruna Lombardi, Caetano Veloso, Caio Fernando Abreu, Carlos Scliar, Chico Buarque, Dalma Nascimento, David Wainstok, Eliane Gurgel Valente e Marilu (Maria Lucy) Gurgel Valente (de Seixas Corrêa), Fauzi Arap, Francisco de Assis Barbosa, Geraldo Holanda Cavalcanti, Gilda Murray, Hélio Pellegrino, Humberto Werneck, Ignácio de Loyola Brandão, Jaime Gerardo Vilaseca Calle, Jiro Takahashi, Joel Silveira, José Castello, José Mário Rodrigues, Júlio Rabin, Lauro Moreira, Lêdo Ivo, Lúcio Cardoso, Lygia Fagundes Telles, Mafalda Verissimo e Luis Fernando Verissimo, Marcílio Marques Moreira.


E mais: Maria Bethânia, Maria Bonomi, Maria Telles Ribeiro e Edgard Telles Ribeiro, Marina Colasanti, Marly de Oliveira, Mary de Camargo Neves Lafer, Nélida Piñon, Nicole Algranti, Olga Borelli, Otto Lara Resende, Paulo Francis, Paulo Gurgel Valente, Paulo Mendes Campos, Pedro Paulo de Sena Madureira, Raimundo Carrero, Rubem Braga, Rubens Ricupero e Marisa P. Ricupero, Samuel Lispector, Rosa Lispector e Vera Choze, Sergio Fonta, Tônia Carrero, Vilma Arêas e Walmir Ayala.

 

Nádia Battella Gotlib, organizadora do livro "Clarice na memória de outros"

Divulgação


“São depoimentos que coletei ao longo das últimas décadas, desde os anos 1980, quando comecei a dar cursos de pós-graduação sobre Clarice Lispector, na Universidade de São Paulo (USP). Tais textos ajudam a entender quem foi essa escritora hoje tão lida. Alguns foram escritos especialmente para a coletânea, a meu pedido. Outros foram anteriormente publicados, mas permaneceram inéditos em livro. Mas todos eles permitem que os leitores se aproximem de Clarice.”

 

Nádia Battella Gotlib, organizadora do livro “Clarice na memória de outros”

 

ELA POR ELES E ELAS

 

Leia alguns dos 65 depoimentos reunidos por Nádia Battella Gotlib no livro “Clarice na memória de outros”

 

Ana Miranda, (escritora)

“Mas a verdade é que, até esse dia de novembro de 1975, Clarice Lispector e eu nunca tínhamos conversado pra valer. Daí meu espanto com o recado que encontrei à minha espera sobre a mesa na redação da ‘Rádio Jornal do Brasil’, quando cheguei de manhã para mais um dia de trabalho. Para ser exata, eram três ou quatro recados com pequenas variantes, na caligrafia dos diferentes colegas que atenderam aos sucessivos chamados. “URGENTE – LIGAR PARA CLARICE LISPECTOR ASSIM QUE CHEGAR.” E um número de telefone. Um pouco emocionada com a perspectiva de falar com ela, disquei o número ainda em pé, antes mesmo de me instalar à mesa. A voz rascante atendeu ao primeiro toque, como quem estivesse a postos, ansiosa, na expectativa daquele som. Explicou que precisava falar comigo imediatamente, sobre alguma coisa que eu tinha escrito e saíra no ‘Jornal do Brasil’. Mas tinha de ser em pessoa, nada de telefone. Então me pedia que eu fosse imediatamente encontrá-la em sua casa. Estava à minha espera.”


Caetano Veloso, cantor e compositor

“O primeiro contato com um texto de Clarice teve um enorme impacto sobre mim. Era o conto ‘A imitação da rosa’, e eu ainda morava em Santo Amaro. Fiquei com medo. Senti muita alegria por encontrar um estilo novo, moderno – eu estava procurando ou esperando alguma coisa que eu ia chamar de ‘moderno’, que eu já chamava de ‘moderno’ –, mas essa alegria estética (eu chegava mesmo a rir) era acompanhada da experiência de crescente intimidade com o mundo sensível que as palavras evocavam, insinuavam, deixavam dar-se. Uma jovem senhora voltava a enlouquecer à visão de um arranjo de rosas-meninas. E voltar a enlouquecer era uma desgraça para quem com tanta aplicação conseguira curar-se e reencontrar-se com sua felicidade cotidiana: mas era também – e sobretudo – um instante em que a mulher era irresistivelmente reconquistada pela graça, por uma grandeza que anulava os valores da rotina a que ela mal recomeçara a se apegar. De modo que quem lia o conto ia querendo agarrar-se com aquela mulher às nuances da normalidade e, ao mesmo tempo, entregar-se com ela à indizível luminosidade da loucura. Era uma epifania típica dos contos de Clarice, que eu iria reencontrar inúmeras vezes nos anos que se seguiram àquele 1959. Agradeço a Rodrigo, meu irmão, sempre tão bom, por esse encontro. Ele me deu uma assinatura da revista ‘Senhor’, na qual eu li esse e outros textos de Clarice.”

 

Chico Buarque, cantor e compositor

“Eu me lembro muito bem do meu primeiro encontro com a Clarice. Foi no Antônio’s, um restaurante e bar aqui no Rio, em 1966, 1967, não lembro exatamente em que ano. Mas a entrada dela no Antônio’s foi algo inusitado. As pessoas não esperavam ver a Clarice lá, nem eu nem outras pessoas que estavam comigo, porque o Antônio’s era isso, era quase um antro da boêmia, bebia-se muito, e a Clarice surgiu lá como um ser exótico, porque tinha mesmo um ar exótico, era muito bonita e tinha os traços quase orientais, maçãs de rosto muito salientes. E era muito reclusa, não saía quase de casa. Então foi surpreendente! Eu me lembro dela entrando no bar e do impacto que isso causou em mim e nas pessoas que estavam em volta e que conheciam Clarice melhor do que eu, que conheciam a Clarice há mais tempo, como o Vinicius (de Moraes). Eu me lembro de, alguns dias depois, a gente ainda comentar: ‘Poxa, a Clarice veio, a Clarice veio...’ E as pessoas que não estavam lá: ‘Poxa, como é que não vi? A Clarice veio, a Clarice veio...” Na época, ela escrevia para a revista ‘Manchete’. Geralmente escrevia crônicas sobre isto e aquilo, mas às vezes fazia umas entrevistas, fazia isso por telefone. E comigo ela fez acho que mais de uma entrevista.”


Hélio Pellegrino, psicanalista e escritor

“Era uma pessoa fora do comum, era uma pessoa fora da norma, inclusive, até para pior, se você quiser... Ela era estranha, perturbadora, ela, enfim, não rodava nos trilhos comuns, e ultimamente e durante muito tempo teve problemas de conflitos sérios, e isso se refletia na sua maneira de ser. Como era uma personagem perturbadora, as pessoas não sabiam bem como levar a Clarice, compreende? E isso dividia um pouco as pessoas, quer dizer, ou as pessoas tinham por ela uma admiração exaltada e então estavam com ela de uma maneira assim incondicional, ou então as pessoas se retraíam. Quer dizer, ela era uma antidiplomata, e isso é engraçado, porque ela foi casada com um diplomata, mas ela não criou – e isso é uma prova da grandeza dela – nenhuma crosta diplomática, nenhum verniz diplomático, porque ela era uma pessoa perturbadora, muito original e incapaz de ser convencional. Ela não conseguia ser convencional. Até por defeito, não era por mérito, não. Isso, inclusive, a incomodava muito, eu tenho certeza disso. Ela talvez gostasse de viver... ou ela teria gostado, se fosse possível, de ‘correr macio’, compreende? De ‘correr frouxo’, mas ela não conseguia. Talvez por insuficiência, não por excesso de virtude no convívio, compreende? Porque ela era realmente uma figura extraordinária.”

 

Humberto Werneck, escritor

“Não sabia ainda dos espinhos que Clarice costumava eriçar no trato com desconhecidos e gelei quando, ao ouvir o pedido de colaboração (que nunca veio), ela indagou, com rude incredulidade: ‘Mas vocês pagam?’. E acrescentou, com a dicção rascante de sua língua presa, que estava ‘muito pobrrre’. Entre outros safanões da sorte, tinha vivido, dois anos antes, o pesadelo daquele incêndio que por pouco não a matou e que apagou um tanto de sua legendária beleza. Comecei a cair, a desabar em mim: o ‘Suplemento’ pagava a seus colaboradores 10... já não sei qual era a moeda em circulação na época; 10 dinheiros. Eu ganhava 400, que mal davam para minhas moderadas farras de moço. E íamos pagar 1/40 disso a Clarice Lispector! Acesa em mim a luz amarela do semancol, fiz no improviso meu dever de casa. Na minha espessa ignorância, também jornalística, eu não sabia da existência de algo chamado edição – achava que uma entrevista transcorreu tal e qual a lemos. Bastava um bom começo, que julguei ter encontrado na hiperbólica declaração de um crítico, de que ‘A paixão segundo G.H. não é um romance’. Seguríssimo, lasquei a primeira pergunta: “A paixão segundo G.H. não sendo um romance...”. Nem pude concluir a frase. “COMO não é um rrromance?”, rugiu Clarice Lispector, petrificando o aprendiz de repórter a seu lado no sofá. Uma foto teve a crueldade de registrar o instante em que, fulminado por um olhar enviesado e hostil, olhar que nem a barata de ‘A paixão...’ mereceria, baixei a cabeça, disposto a ir lá dentro me suicidar.”

 

Lygia Fagundes Telles, escritora

“(O tema do simpósio era) ‘La Nueva Narrativa Latinoamericana’. No hotel, os congressistas já tinham começado suas discussões na grande sala. Mas essa gente fala demais!, queixou-se a Clarice na tarde do dia seguinte, quando então combinamos fugir para fazer algumas compras. Na rua das lojas fomos perseguidas por moleques que com ar secreto nos ofereciam aquelas coisas que os brasileiros apreciam... Corri com um deles que insistiu demais. Já somos loucas pela própria natureza, eu disse. Não precisamos disso! Clarice riu e com o vozeirão nasalado perguntou onde ficavam as lojas de joias, queríamos ver as esmeraldas, ‘Esmerraldas’! Quando chegamos ao hotel, lá estavam todos ainda reunidos naqueles encontros que não acabavam mais. Mas esses escrrritores deviam estar em suas casas escrrrevendo!, resmungou a Clarice enquanto disfarçadamente nos encaminhamos para o bar um pouco adiante da sala das ‘ponencias’; a nossa intervenção estava marcada para o dia seguinte. Quando eu devia começar dizendo que literatura ‘no tiene sexo, como los ángeles’. Alguma novidade nisso? Nenhuma novidade. Então a solução mesmo era comemorar com champanhe (ela pediu champanhe) e vinho tinto (pedi vinho) a ausência de novidades. Já tinham nos avisado que o salmão colombiano era ótimo, pedimos então salmão com pão preto, ah, era bom o encontro das escritoras e amigas que moravam longe, ela no Rio e eu em São Paulo.”

 

Maria Bethânia, cantora

“Eu era muito nova, muito menina, ainda na Bahia. Caetano ganhou, não me lembro agora se de meu irmão ou de meu pai, a assinatura da revista ‘Senhor’, da qual Clarice era contista. Então, Caetano me falou: “Bethânia, tem uma autora que eu acho que você vai adorar”. E me mostrou um primeiro conto. Eu não me lembro exatamente qual foi agora, mas eu ficava, assim, aguardando chegar aquela revista para eu poder ter acesso exatamente aos textos de Clarice. Me lembro de alguns. Tinha um sobre Brasília que estava recém-inaugurada ou ia inaugurar. Eu me lembro porque Caetano discordava de ela chamar o povo da terra de “brasiliários”, e eu achava interessante como batia no meu ouvido e como batia no de Caetano, a diferença. Mas sempre entusiasmadíssima lendo, porque era um universo diferente, que eu nunca tinha encontrado em nenhum autor, a maneira de expressar, de tudo... Muito nova, muito particular e muito profunda, muito das emoções e muito das sensações. E eu, naturalmente, fiquei muito envolvida. Daí, passei a ficar apaixonada por ela, queria ler tudo o que fosse possível, tudo o que ela escrevia. Fui conquistando, assim, aos poucos, a alegria e o prazer de ler Clarice Lispector. Enquanto lia Clarice, as canções começaram a brotar em nosso grupo lá na Bahia. Capinan escreveu com Caetano “Que mistério tem Clarice”, que não era uma referência diretamente a ela, mas, ao mesmo tempo, para mim, era. Era uma brincadeira de Capinam com Caetano, não sei. Mas para mim tem a ver – ‘Que mistério tem Clarice’.”


Marina Colasanti, escritora

“O dia em que conheci Clarice não foi o mesmo em que ela me conheceu. Eu, toda adoração, observando-a, ela, sem motivo algum para pousar o olhar em mim. Saindo juntos da redação do ‘Jornal do Brasil’, o jornalista Yllen Kerr, grande amigo meu, disse que estava indo visitar Clarice e perguntou se eu queria ir. Queria muito, muitíssimo! Desde o primeiro número da revista ‘Senhor’, lia vorazmente seus contos, havia lido ‘Laços de família’ em puro encantamento, e naquele mesmo ano tinha ido a uma noite de autógrafos dela. Sim, eu queria. E lá fomos, rumo ao Leme. Ela não veio nos receber à porta. Ou estava acabando de se aprontar ou conservava hábitos de Itamaraty. A sala em penumbra, aceso somente um abajur ao lado do sofá. Foi nessa penumbra que ela fez sua entrada. Achei-a deslumbrante, pareceu-me até mais alta do que realmente era. O rosto exótico e maquilado – nos anos a seguir nunca a veria sem maquilagem –, as maçãs altas conduzindo o olhar para o corte eslavo dos olhos. Estava vestida de escuro, em tom quente, usava um vestido ou uma malha de mangas compridas. Lembro-me das mangas compridas porque faziam sobressair as mãos elásticas, tão claras na semiescuridão, e as pulseiras gêmeas, escravas, de cobre martelado que usava nos dois pulsos.”

 

Capa do livro, "Clarice na memória de outros"

reprodução

 

“Clarice na memória de outros”
• Nádia Battella Gotlib (org.)
• Autêntica Editora
• 504 páginas
• R$ 94,90 (livro físico) e R$ 67,90 (e-book)

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