Leia depoimento de Míriam Leitão a respeito do romance “Tempos extremos”. O livro que marca a estreia da jornalista na ficção completa dez anos e ganha nova edição da Intrínseca, incluindo nova capa e uma nota de apresentação da autora.

 

“No início da Comissão da Verdade decidi que não falaria do meu caso de prisão e tortura por alguns meses entre 1972 e 1973. Eu jamais havia falado, nem pedi indenização. Escolhi mais uma vez ser a jornalista que cobria os fatos. Fiz documentário, entrevistas, programas, reportagens. Mas ninguém entende os caminhos do inconsciente e da ficção. Numa tarde de descanso, uma história começou a surgir sem que eu soubesse para onde estava sendo levada.

 

Misturei dois passados. Eles nos encaravam naquele começo da segunda década do século. Ainda nos encaram, a ditadura e a escravidão. A Comissão da Verdade começou em 2012. O Cais do Valongo, por onde passaram mais de um milhão de africanos escravizados, tinha sido redescoberto nas escavações para as obras das Olimpíadas.

 

Olhando para esses dois passados inconclusos, mal discutidos, que permanecem como sombra sobre a História do Brasil, eu escrevi ‘Tempos extremos’. A trama se passa naquele ano de 2012, numa fazenda histórica mineira. A família, centro da história, vai para a Minas profunda e, nesse local, as verdades impregnadas nas paredes e nas dores de cada um reaparecem e têm que ser enfrentadas. Mas, de novo, qual é a magia da ficção? A jornalista que eu sou, treinada para escrever sobre fatos concretos e reais, teve que se deixar levar por uma misteriosa tessitura.

 

A família descrita no livro vive uma polarização radicalizada, ‘desavenças cristalizadas’, como escrevi. O encontro dos parentes é arruinado pelo passado não resolvido da ditadura. Os debates que têm a fratura exposta lembram o Brasil que começaria em 2018 com a chegada da extrema direita ao poder. Mas eu estava escrevendo entre 2012 e 2013. Mexendo em dois passados, o livro descreve um futuro que chegaria em alguns anos. Hoje é mais atual. Por isso tem agora uma nova edição.”

 



 

Leia trecho do livro

 

“ Quando Alice fala parece em transe.


— Cada dia podia ser o último. A luta, a gente pensava só na luta. Estranha hora para se apaixonar. Nos retalhos do tempo, falávamos de nós, daquele amor sem futuro, que podia ser sacrificado a qualquer momento por uma missão que um de nós recebesse, ou se um de nós caísse. Olhem o rosto dele: mesmo machucado, morto, está bonito. Eles entraram no apartamento onde nós estávamos reunidos. Invadiram atirando. Morreram dois, outros dois foram levados feridos.

 

Nunca mais foram vistos. Nós estávamos num quarto conversando e já de saída para a pequena casa em que morávamos, na periferia. Não deu tempo nem de entender o que se passava. Foi tudo tão rápido, em minutos estávamos algemados e sendo arrastados para fora do apartamento, jogados num camburão. Éramos sete, um fugiu. Na prisão fomos separados. Ele só falou comigo uma vez, dias depois. Não sei quantos, tinha perdido a noção do tempo.

 

Ele estava saindo do interrogatório e eu aguardava no corredor. Estava fraca demais, eu vi o rosto dele como miragem. Ele gritou que me amava e que protegesse nosso filho. Estranha hora para ter um filho, pensei. Entrei na sala de interrogatório para mais uma sessão. As feridas dos cigarros queimados ainda doíam no meu braço, peito, costas.

 

Uma parte da tortura era não dar comida. Pode alguém gerar outro ser quando não se alimenta? Eu achava que não sobreviveríamos, e a primeira a morrer seria a criança que eu esperava. Mas o grito dele de que eu protegesse nosso filho, me fortaleceu. Ele nunca conheceu Larissa. Tudo foi há muito tempo, mas eu ainda o vejo e ouço gritando o seu amor. Descobri depois, foi a nossa despedida.”

 

“Tempos extremos”
Míriam Leitão
Edição comemorativa de dez anos de lançamento
Editora Intrínseca
304 páginas
R$ 79,90

 

Capa do livro

Reprodução

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