Leia depoimento da autora Ana Cristina Braga Martes, autora do romance ‘Sobre o que não falamos’, e um trecho da história que tem como pano de fundo as consequências do golpe de 1964.
Ana Cristina Braga Martes (“Sobre o que não falamos”)
“Não foi fácil crescer sob a ditadura, assim como não foi fácil escrever, na voz de uma menina, sobre o silêncio maciço das ruas espelhado dentro de casa. Crianças são boas para sondar silêncios porque aprendem rápido que os adultos mentem e escondem. Entre nós, a ditadura tornou o mundo dos adultos menos sutil, ao impor e decretar modos de governar e de agir, ao mesmo tempo em que prendeu e arrebentou opositores. Nos espaços públicos e na grande maioria das escolas ouvia-se o discurso laudatório pró-governo ou então o silêncio falsamente aclamado.
Alcaguetes se infiltravam por todos os cantos. No meu livro, tentei reproduzir essa atmosfera policialesca, política e social que, de fato, me atingiu quando criança e nele fui crescendo, levando livros embaixo da blusa para ler trancada no banheiro, ou ouvindo casos compartilhados entre adultos sobre pessoas que fugiam, parentes e amigos que desapareciam ou que apareciam mortos ou presos.
Com o golpe de 64 e, mais ainda com a publicação do AI-5 em 1968, a ditadura chancelou o autoritarismo também na esfera privada, justificando e naturalizando prisões e mortes, ao mesmo tempo em que varria a própria sujeira para debaixo do tapete. Regimes autoritários reverenciam a violência e encorajam pessoas comuns a não dialogar.
A questão é se perguntar quão distantes estamos hoje do período ditatorial inaugurado em 1964. No meu livro, escrito durante a pandemia, procurei fazer analogias entre a ditadura militar e o que voltamos a viver durante o governo Bolsonaro, com algumas pessoas defendendo a intervenção das Forças Armadas. Escrever é uma forma de não esquecer, e os temas são muitos, da ditadura à violência, do racismo ao feminicídio, precisamos falar sobre o que ainda não falamos suficientemente.”
Trecho
“Eu tinha reumatismo desde os quatro anos de idade e pensava que toda casa com criança doente fosse quieta, quase muda, e com o tempo percebi que nossa casa era habitada por vários tipos de silêncio. O silêncio branco do lençol estendido sobre a cama, do ferro de passar contornando cada botão de camisa, o silêncio morto do cheiro de naftalina, de um prato de sopa largado pela metade, o silêncio imposto às borboletas que meu avô colecionava. Tão quieta, a casa me fazia pensar numa história que meu avô contava sobre a primeira vez que ele conseguiu enfiar o freio na boca de um cavalo enquanto o pai dele mostrava como o bridão (nunca me esqueci desta palavra) atrofiava a língua do animal. E nessas horas eu só pensava no meu pai e minha mãe chegando para me levar dali com eles.”
“Sobre o que não falamos”
Ana Cristina Braga Martes
Editora 34
200 páginas
R$ 62,00