A singular e complexa história de Joaquim de Almeida, africano traficado que se tornou traficante de africanos, é contada em novo livro do professor Luis Nicolau Parés, titular do Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e nos mostra mais uma camada das mazelas e extensas cicatrizes que envolvem a África e a América do Sul.
Conforme o próprio autor faz questão de destacar, é óbvio que “o tráfico de escravos transoceânico foi uma empresa capitalista essencialmente branca a serviço dos interesses escravagistas de uma classe senhorial euro-brasileira”, mas também é importante entender como alguns libertos podiam fazer parte do mundo clandestino do tráfico atlântico e lucrar, de modo pontual ou ocasional, com o nefando comércio negreiro.
Nascido em Barcelona, Luis Nicolau Parés escreveu “A formação do candomblé” (2006), em que discute aspectos da estruturação de identidades étnicas dos africanos, “O rei, o pai e a morte” (2016), onde examina as práticas religiosas na África Ocidental, e foi coeditor de “Sorcery in the Black Atlantic” (2011), livro que traz uma abordagem sobre o fenômeno atlântico da feitiçaria e suas ligações com a modernidade e a globalização. Agora, em “Joaquim de Almeida” (Companhia das Letras), faz um profundo relato biográfico do personagem e de seu entorno, apesar de admitir a existência de “inevitáveis lacunas” mesmo tendo se debruçado sobre o tema por cerca de 10 anos.
A disseminação de fake news, grave e preocupante problema do nosso tempo, exige atenção especial para que essa história não caia em um viés de manipulação ideológica, explica o autor, pois o fato de alguém que sofreu em cativeiro, depois de emancipado, se transformar em um senhor de escravizados, pode levar a teorias conspiratórias, “embora numa sociedade escravocrata fosse o caminho quase obrigatório dos poucos afortunados que conseguiram prosperar”.
O professor toma o cuidado de traçar essa linha para que o leitor entenda o contexto da época e esteja ciente de que Joaquim fez parte de uma minoria dentro da minoria.
Nascido na aldeia de Hoko, no país Mahi, Joaquim desenvolveu habilidades linguísticas no Brasil que podem ter lhe ajudado a assumir funções de controle e vigilância, “instruindo e transmitindo ordens aos escravizados, tanto a bordo como nos armazéns e barracões em que eles eram depositados”.
As pesquisas apontam que o africano teria sido escravizado em 1814, permanecendo nessa condição por cerca de 15 anos. Durante esse período, estabeleceu uma relação de aprendiz e mestre com seu patrono, o traficante Manoel Joaquim, algo pouco usual nas relações de sujeição servil, passando a dominar, inclusive, a escrita, elemento fundamental para sua ascensão comercial.
Parte de seu sucesso se devia à habilidade de transitar e negociar com a classe senhorial, provavelmente também com autoridades policiais. Possivelmente, por volta de 1830, Joaquim prestou algum serviço de embarque ou desembarque de carregações e sua ligação com parceiros africanos permite supor que o tráfico de seres humanos possibilitou que ele acumulasse o valor necessário para comprar a própria liberdade.
“A ausência de qualquer perspectiva levou alguns apátridas africanos a se engajarem em atividades ilícitas associadas ao tráfico ilegal, uma oportunidade que os libertos mais prósperos e aqueles mais necessitados não deixaram de aproveitar”.
Com isso, o enriquecimento de Joaquim veio de sua fluida alternância entre os papéis de “intermediário” e “comerciante”, atuando como uma espécie de “broker” e “trader”, interagindo com daomeanos, portugueses, brasileiros e ingleses.
“Em termos da cultura local do vodum, ele tinha um pacto com Legba, o linguista, o senhor da encruzilhada, o abridor dos caminhos”. Catorze anos após sua alforria, o africano mahi teria chegado ao patamar de 10% dos homens mais ricos da Bahia, com uma fortuna de aproximadamente 37 contos de réis.
Ao voltar em definitivo para o continente africano, em 1844, Joaquim também teria tido influência na introdução do catolicismo na Costa da Mina. “O pluralismo religioso constituía marcas distintivas dos libertos agudás e suas famílias. A afiliação ao catolicismo, sobretudo a partir do ritual do batismo, foi crucial para gerar uma dinâmica associativa que transcendia a questão identitária e implicava formas de sociabilidade de caráter exclusivista, muitas vezes de ordem mercantil ou comercial”.
Joaquim chegou a reconhecer 34 filhos (23 homens e 11 mulheres), mas é possível que existissem outros. Nas sociedades iorubás, a formação de uma “grande família” em torno de uma liderança forte (reunindo o maior número de mulheres, filhos e escravizados), era o padrão seguido pelos “grandes homens”. Contudo, viveu momentos de declínio e até de ruína.
A história, no entanto, não termina com a última página do livro. Em 2023, 166 anos após a morte de Joaquim de Almeida, foram encontrados no Brasil 3.190 trabalhadores em condições análogas à escravidão, o maior número desde 2009, de acordo com o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. A escravidão moderna é real e está diante dos nossos olhos.
Entrevista/ Luis Nicolau Parés (antropólogo)
“O livro tenta decifrar as motivações de uma personagem paradoxal e camaleônica”
No decorrer de sua pesquisa o que mais lhe chamou a atenção sobre a personalidade de Joaquim de Almeida? Por quê?
A vida de Joaquim de Almeida apresenta numerosos aspectos de interesse e, na verdade, em termos narrativos, sua biografia funciona como fio condutor que me permite abordar uma série de temáticas historiográficas interrelacionadas, como a vida dos libertos na Bahia oitocentista, o movimento de retorno a África, o tráfico de escravizados no período ilegal ou os pormenores do comércio atlântico que permitiu aos retornados se constituir numa elite local em terras africanas.
Outro aspecto relevante diz respeito à afiliação religiosa desses retornados que, sem esquecer suas tradições ancestrais, adotavam o catolicismo ou o islã como forma de agregar recursos espirituais complementares.
Almeida é lembrado, por seus descendentes, como o introdutor do catolicismo no litoral africano e por ter construído, décadas antes da chegada das missões europeias, uma capela sob a invocação de Nosso Senhor da Redenção, o mesmo nome da irmandade católica de homens pretos da qual participara na Bahia.
Essa forma de abrasileiramento cultural, assumindo as formas da religião dominante, facilitou sua mobilidade social numa sociedade escravocrata que tendia a marginalizá-lo. Porém, de volta na África, ele também formou uma grande família poligâmica na contramão da ortodoxia cristã e nos moldes das chefias locais.]
Por outro lado, como reza o subtítulo do livro, um aspecto instigante e complicado de sua biografia é a passagem que ele fez da condição de escravizado para o envolvimento no lucrativo e criminoso comércio do tráfico atlântico. De fato, enquanto cativo de um capitão negreiro, ele já participava dessa atividade antes de sua emancipação.
Porém, o que se destaca no caso de Almeida é que, uma vez emancipado, além do comércio em pequena escala, ele conseguiu participar do grande negócio do tráfico ilegal. Transitando pela Bahia e atuando como feitor na costa africana, conduzindo os comboios humanos e juntando os carregamentos para o embarque, ele passou a suprir alguns dos mais poderosos negociantes das praças da Bahia, Recife e Cuba.
Sua capacidade de articulação internacional e mobilidade social é realmente notável e demonstra a agência, iniciativa e habilidade de alguns libertos para operar em circunstâncias definitivamente adversas.
Como é pesquisar uma história tão antiga? Os inventários, registros e documentos remanescentes são bem preservados? O que se perdeu ao longo dos anos?
Enquanto segmento social marginalizado, os africanos no Brasil colonial e imperial raramente aparecem documentados; os que estavam envolvidos numa atividade clandestina como o tráfico de escravizados ainda menos, pois tratavam de ocultar seus movimentos.
A reconstituição da trajetória de vida de Joaquim de Almeida é, assim, necessariamente fragmentada e parcial. Porém, testamentos, inventários, cartas de liberdade, passaportes, registros eclesiásticos, permitiram reconstituir aspectos parciais dessa história de vida e, em particular, mapear as redes sociais em que estava inserida.
Nesta pesquisa também trabalhei com uma metodologia inovadora que consiste em levar os documentos achados nos arquivos baianos aos descendentes dessas personagens na África que, em troca, compartilharam as tradições orais preservadas pela memória coletiva e inclusive seus arquivos familiares. Esse cruzamento de documentação dos arquivos brasileiros com a tradição oral na África resultou muito frutífero.
Essa história pode contribuir para o entendimento sobre a escravização no Brasil? Por que é importante contá-la?
O livro incide na história do tráfico de escravizados atlântico e na história da escravização no Brasil Império, um conhecimento fundamental para compreender e combater o racismo contemporâneo, herdeiro desse passado.
Produzir uma história que evite dicotomias simplistas entre vítimas e algozes, e que aponte para a complexidade das relações sociais e as escolhas, por vezes contraditórias, dos libertos africanos enquanto sujeitos históricos, é um desafio intelectual e político não isento de riscos. De todo modo, promover a memória e o debate em torno desse passado trágico é uma forma de reforçar a reflexão e a vigilância permanente contra as forças do racismo.
Como as experiências afro-católicas auxiliaram o projeto de liberdade de Joaquim e seu retorno ao continente africano?
Como já disse acima, a afiliação ao catolicismo foi uma forma de os africanos, libertos e escravizados, se apropriarem dos códigos da sociedade colonial, para nela poderem navegar. Isso facilitou sua mobilidade social num contexto adverso.
Porém, a exportação das práticas e instituições católicas (irmandades, missas, batismos, casamentos) para a África permitiu aos retornados agudás reforçarem suas redes de solidariedade e essas redes, por sua vez, facilitaram a articulação de regimes de confiança e alianças que favoreciam as atividades comerciais, entre outras.
Assim, a prática religiosa católica não era apenas uma questão identitária, mas favorecia a economia e a base material de uma comunidade atlântica que interconectava a África ocidental e a Bahia.
Você fala dos riscos de escrever sobre alguém controverso como Joaquim e do desejo de não romantizá-lo. Qual a sua avaliação atual? Acredita ter tido sucesso ou faria algo diferente?
Escrever a história de alguém que, em termos contemporâneos, consideraríamos um criminoso gera uma série de dilemas e incômodos morais.O livro tenta decifrar as motivações de uma personagem paradoxal e camaleônica, ao mesmo tempo católico e poligâmico, escravizado e traficante de escravizados, negro em terra de branco e “branco” em terra de negro, um apátrida atlântico na era dos nacionalismos.
A investigação almeja revelar essa complexidade humana, para além de representações estereotipadas e reducionistas. O livro também pretende compreender a modernidade atlântica que estava sendo prefigurada naquela época e para a qual africanos como Joaquim de Almeida contribuíram de forma significativa.
Porém, é preciso insistir na excepcionalidade da trajetória de Almeida, um caso raro e singular de relativo sucesso econômico, numa sociedade classista, racista e desigual que marginalizava a maioria dos negros, escravizados ou libertos.
De fato, o livro sugere que Almeida conseguiu prosperar, sobretudo, quando se exilou na costa da África, e lá seus serviços resultaram úteis aos interesses dos grandes negociantes euro-americanos. Provavelmente, se tivesse ficado na Bahia não teria prosperado tanto.
De todo modo, a excepcionalidade de Almeida oferece uma janela privilegiada para acessar o mundo de uma minoria de libertos africanos que, com seus descendentes, conseguiram retornar à África e se afiançar como um grupo diferenciado, hoje conhecido como os agudás.
“Joaquim de Almeida - A história do africano traficado que se tornou traficante de africanos”
• De Luis Nicolau Parés
• Companhia das Letras
• 430 páginas
• R$ 95,49 (livro) e R$ 44,90 (e-book)