Estátua em homenagem ao personagem Salvo Montalbano no centro de Porto Empedocle, vilarejo onde nasceu o escritor italiano Andrea Camilleri, próximo de Agrigento, na Sicília -  (crédito: Antonio Pignato/wikimedia)

Estátua em homenagem ao personagem Salvo Montalbano no centro de Porto Empedocle, vilarejo onde nasceu o escritor italiano Andrea Camilleri, próximo de Agrigento, na Sicília

crédito: Antonio Pignato/wikimedia

 

George Moura

Especial para o EM

 

Quem gosta de literatura policial não deve deixar de ler o novo livro do mestre siciliano Andrea Camilleri, “O sorriso de Angélica”. Na verdade, o livro nem é tão novo assim. Foi lançado em 2010, inspirou a série da BBC “Inspetor Montalbano” e só recentemente chegou ao Brasil. Assim como em outras dezenas de romances, Camilleri demonstra que estava em plena forma, escrevendo com estilo, graça e um sabor de nostalgia.


O italiano Andrea Camilleri nasceu em Porto Empedocle (Sicília), em 1925, e faleceu em julho de 2019. Escritor, roteirista e diretor de teatro e televisão, teve mais de 30 milhões de exemplares vendidos, boa parte deles dos livros protagonizados pelo irresistível personagem do comissário Salvo Montalbano, um clássico detetive de romance.


Desde “A forma da água”, em 1994, primeiro livro com as aventuras e investigações de Salvo Montalbano, Camilleri cria uma realidade baseada na sua Sicília natal, mas que vai para além dela, ao inventar a cidade de Vigàta, a província fictícia de Montelusa, seus moradores, policiais e criminosos. A inteligência investigativa, o apetite voraz e o charme de derrubar até avião em velocidade de cruzeiro fazem do comissário um detetive de carne e osso, como se você pudesse encontrá-lo no meio da rua, e ao mesmo tempo, ele é um tanto quanto inventado.

 

 

Há mais de 20 anos, quando descobri a literatura de Camilleri, fiquei tão entusiasmado com o mundo de Montalbano que decidi conhecer a Sicília, mais especificamente Vigàta. Mas Vigàta existe apenas na imaginação do autor e de seus leitores. Na época, sem ainda saber desse fato, eu e minha esposa, ela com seis meses de gravidez, percorremos a ilha da Sicília em busca de Vigàta. Fomos até Agrigento, na esperança de esbarrar com Camilleri, mas ele já morava em Roma há tempos. Não encontramos Vigàta e nem seu autor, mas não houve frustração e sim mais encantamento. Como é impregnada da oleosidade realista a literatura do mestre do romance policial italiano, saboreamos cada esquina e cada prato suculento de peixe e massas, divinamente descritos por Camilleri nos seus livros, pelos olhos e pela boca do delegado Montalbano. Sempre acompanhado por um tinto local: saúde! Foi uma delícia de lua de mel.


Peço desculpa ao leitor pela digressão... Voltando!


No livro “O sorriso de Angélica”, Salvo Montalbano se vê às voltas com uma sucessão de assaltos a casas de um grupo de amigos abastados. O modus operandido criminoso se repete e o meliante ainda provoca o comissário com bilhetes enigmáticos, num jogo de gato e rato. Tudo parece correr dentro da normalidade até que uma certa senhorita Cosulich, Angélica Cosulich, cruza o caminho do delegado, como uma das vítimas. Noivo de Livia, o delegado avança na investigação e se perde nos labirintos da paixão pela bela e seu sorriso. O renomado comissário Montalbano se vê diante de um jogo de mentiras. A gangue especializada em roubar residências deixa os moradores em polvorosa e cabe a ele pôr um fim nisso. Montalbano terá que fazer uma escolha difícil: viver uma grande paixão ou desvendar um crime. Reserve um tempo da sua vida, pois vai ser difícil largar o livro.


Os romances policiais de Camilleri fizeram tanto sucesso que foi inevitável surgirem as adaptações para a TV. Em 1999, a emissora italiana RAI lançou o seriado “Il Commissario Montalbano”. A série durou15 temporadase seuúltimo episódio foi ao ar em 8 de março de 2021, quase dois anos após a morte do autor. Faziam parte do elenco nomes importantes da televisão italiana, como Luca Zingaretti no papel de Montalbano, Cesare Bocci, Angelo Russo e Peppino Mazzotta. Os episódios foram filmados no sudeste da Sicília e os diálogos eram uma mistura de italiano e dialeto siciliano.


“O sorriso de Angélica” é aquele tipo de livro de literatura confortável e saborosa. Como um novo filme de Woody Allen, que sempre pode parecer mais do mesmo para o espectador apressado, mas, na verdade, é um grande autor a fazer suas reflexões sobre a vida e as paixões humanas. Como alguém já disse: o estilo de um autor talvez seja o seu teto inventivo. A literatura de Andrea Camilleri harmoniza com um bom tinto médio corpo e sabor intenso. Boa leitura!


Em tempo: nosso filho, João, aquele que estava na barriga enquanto os pais buscavam Vigàta, hoje tem 22 anos. Acho que já está maduro para ler as desventuras policiais e amorosas do comissário Montalbano.

 

>> George Moura é roteirista e mestre em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP), autor das séries “Onde está meu coração”, “Amores roubados”, “O Rebu” e roteirista dos filmes “Redemoinho”, de José Luiz Villamarim, “Linha de Passe”, de Walter Salles e Daniela Thomas, “Getúlio” e “As Polacas”, de João Jardim, entre outros.

 

Andrea Camilleri: mais de 30 milhões de exemplares vendidos

Andrea Camilleri: mais de 30 milhões de exemplares vendidos

afp

 

Trecho


“Havia uma única porta em todo o enorme corredor em formato de meia-lua e foi nessa que o comissário tocou.

 

- Quem é? – Perguntou pouco depois uma voz feminina jovem atrás da porta.

 

- O comissário Montalbano.

 

A porta se abriu e o comissário vivenciou os três seguintes fenômenos em sequência: Primeiro, sua visão ficou turva; segundo, suas pernas ficaram bambas; terceiro, sentiu uma notável falta de ar.

 

A senhorita Cosulich não era apenas uma mulher de uns trinta anos de espantosa beleza natural, que não usava nenhuma gosta de maquiagem assim como os selvagens, mas também...

 

Será que ela era real ou fruto de sua imaginação?

 

Era possível que pudesse acontecer uma coisa dessas?

 

A Srta. Cosulich era exatamente idêntica – uma cópia perfeita – da Angelica de Orlando Furioso. Era a própria em carne e osso, exatamente como ele a tinha imaginado e desejado aos dezesseis anos, quando se escondia para ver as ilustrações de Gustavo Doré que sua tia o proibia.

 

Uma coisa inconcebível, um verdadeiro milagre.”

 

“O sorriso de Angélica”
• De Andrea Camilleri
• Tradução de Aline Leal.
• Record
• 224 páginas
• R$ 59,90.