Stefania Chiarelli
Especial para o EM
“Mas eu gostaria de ter um quarto com quatro paredes e uma porta fechada. Um quarto com uma cama, uma mesa e uma cadeira, com uma máquina de escrever ou um bloco de papel e um lápis, nada mais. Sim, uma porta que eu pudesse trancar. Nada disso posso ter antes de completar dezoito anos e ser autorizada a sair de casa”.
Em pleno século XXI, o desejo da narradora de “Trilogia de Copenhagen”, de Tove Ditlevsen, soa familiar para quem leu Virginia Woolf. Em 1928, a autora inglesa apontou de forma contundente as condições para que as mulheres pudessem escrever, no hoje clássico ensaio “Um teto todo seu” (na tradução brasileira de Bia Nunes de Sousa), derivado de palestras proferidas em duas universidades britânicas.
Precedendo em mais de quatro décadas a declaração de Ditlevsen, Woolf antecipa a reivindicação da ficcionista dinamarquesa sobre o laço entre liberdade intelectual e independência material: para se inscrever nessa tradição masculina, uma mulher precisa de um quarto com porta fechada, algum dinheiro e paz para pensar. Unidas pelo ímpeto da criação - a imagem da máquina de escrever como extensão do corpo não é detalhe menor - Woolf e Ditlevsen estão separadas pela origem proletária da segunda. Seu destino era servir; no máximo, datilografar.
Composta dos livros “Infância”, “Juventude” e “Dependência”, a trilogia autobiográfica da escritora nórdica aborda a origem pobre, doenças, abortos e dependência de drogas. Os temas pesados não afastam a leitura, ao contrário, seduzem pela economia da expressão e a forma direta de narrar.
Publicada no original em partes separadas, entre 1967 e 1971, a obra, lida hoje em conjunto na tradução do dinamarquês por Heloisa Jahn e Kristin Lie Garrubo, traz uma experiência única, nos colocando diante de uma grande autora até há pouco desconhecida do público brasileiro.
A trilogia inicia quando a narradora tem seis anos e vive no bairro operário de Vesterbro, na Copenhague no início dos anos 1920. Gentrificado e cheio de turistas, o lugar agora está distante daquele mundo do início do século passado, em que se narra o cotidiano miúdo na rua Istedgade, e dentro dela o condomínio em que vive a família, entre conversas de pátio e fofocas de vizinhos. Nessa realidade, a pobreza caminha em paralelo ao raquitismo e à desnutrição.
Para pessoas como o pai, militante socialista, a situação é de grande vulnerabilidade – quando não desempregado, salta de emprego em emprego com remuneração precária. Na perspectiva da narradora, as figuras masculinas em geral estão marcadas por certa fragilidade, no limite do patético. São os namorados, amigos, editores, maridos, médicos, e deles muitas vezes depende a inserção em um universo desejado.
A subordinação começa, claro, dentro de casa. Afetuoso, o pai presenteia a filha com “Os contos de Grimm” aos cinco anos, transformando a infância cinzenta em algo atraente. Apesar de leitor, ele não encoraja a filha a ser artista, pois julga tolice uma menina ser poeta.
O irmão Edvin é quem descobre os escritos de Tove no caderno de poesia, que permanece escondido, migrando entre a bolsa, o colchão e a gaveta. Ele zomba desses poemas ingênuos, para depois perceber ali uma subjetividade até então desconhecida - o caderno é a parte mais viva de si mesma, pensa ela, “que pode ser destruída com uma só palavra rude ou insultante”.
A interrupção dos estudos por falta de condições financeiras é determinante para que aos quinze anos a jovem comece a trabalhar como empregada doméstica, entregando aos pais parte do minguado salário. Sua classe social está marcada por toda sorte de privações, o que torna tudo mais árduo para as mulheres, cujas limitadas perspectivas levam a um mundo do trabalho que devora aos poucos, como o olhar de desprezo das patroas sobre a jovem inexperiente: “quero tanto ser dona do meu tempo em vez de sempre vendê-lo”, conclui.
Uma das sensações de atordoamento provocada pelo texto vem da relação materna. Decifrar a personalidade enigmática da mãe, cheia de silêncios e reações imprevistas, provoca estado constante de alerta. O hábito de desqualificar a filha cria uma distância intransponível entre elas, e os momentos de felicidade são raros:
“Minha relação com ela é próxima, dolorosa e instável, e estou sempre atrás de algum sinal de amor. Tudo o que eu faço, faço para agradá-la, para fazê-la sorrir, para evitar que se enfureça comigo. Essa é uma tarefa muito cansativa, porque ao mesmo tempo preciso esconder muitas coisas dela”. Caos, amor e fúria convivem lado a lado, levando a uma conclusão: “A maioria dos adultos diz que teve uma infância feliz e talvez eles próprios acreditem nisso, mas eu não acredito. Acredito que essas pessoas simplesmente tiveram a sorte de esquecê-la”.
Esse tipo de formulação é frequente ao longo do volume, marcado por uma dicção sem rodeios, que justapõe fatos aparentemente sem importância - uma rua, a amiga, um livro, o anseio por um casaco mais quente - para, de repente, desferir um golpe certeiro. São notáveis a secura e a aspereza da autora para dizer a dor, condensando em poucas frases situações e sentimentos que nas mãos de alguém menos talentoso soariam piegas.
A linguagem vai dando novos sentidos ao vivido; o tempo engole tudo e deforma as lembranças, fazendo com que a infância esfarrapada passe a ser vista em “Juventude” como segura e feliz, uma “biblioteca da alma” de onde se retira conhecimento e experiência.
A trilogia lança interessante provocação para quem procura identificar com lupa as coincidências entre vida vivida e matéria narrada: em determinada passagem, o irmão a confronta, dizendo que seus poemas estão cheios de mentiras.
No futuro, o marido reclama dos registros demasiado reais, temendo ser reconhecido no personagem do romance. Fabulação demais, realidade de menos; realidade demais, imaginação de menos. Somadas as queixas, o resultado final revela a habilidade da autora no manejo dessas instâncias.
Desde cedo, a personagem preza a ideia de ser levada a sério, pois nada em sua vida importa mais do que o ato de escrever, modo de se livrar das tristezas e, talvez, escapar do lugar onde nasceu. Romper o anonimato e ver seus poemas e romances reconhecidos equivale também a entender que a felicidade existe quando se escreve.
Por isso tão dura a “Dependência”, em que se narra a espantosa queda da protagonista. O terceiro volume gira em torno da transitividade do verbo depender e suas múltiplas acepções: estar sujeita a, sob o domínio de, subordinada a algo ou a alguém. Decidida a interromper uma gestação indesejada, ela busca fazer um aborto (ilegal no país, e aqui quem leu “O acontecimento”, de Annie Ernaux, encontrará cruéis semelhanças).
O tabu e o silêncio em torno disso resultam na odisseia médica que encontra ápice no envolvimento de Tove com o jovem médico Carl, o terceiro marido - a seu pedido, ele passa a ministrar doses cada vez maiores do analgésico petidina.
Aos 25 anos, reconhecida e bem remunerada por seu ofício, ela se apaixona pelos efeitos da droga. O prazer indescritível leva ao inferno de toda a parte final, em que acompanhamos o isolamento, a decadência física e o abandono dos filhos em função do vício. Então a pulsão da escrita e a dependência dos opioides irão duelar dentro de si.
Escrever surge, nesse relato comovente e brutal, como uma tarefa tão urgente quanto secreta, algo comparável ao impacto da droga de que não consegue prescindir. O conselho do médico da reabilitação tem algo de muito pungente, quando explica à paciente que, mesmo depois de recuperada, ela poderá esquecer do horror passado na clínica. Poucas pessoas conseguem dizer não às recaídas, no entanto, talvez ela seja uma exceção, porque tem algo pelo que viver, alerta.
A morte da escritora em 1976, aos 59 anos, atesta quão árdua foi essa batalha. Tove Ditlevsen viveu décadas às voltas com internações, mas sobretudo com as teclas da máquina de escrever.
A consagração como um dos nomes mais importantes da literatura dinamarquesa e a publicação de mais de vinte livros, além da obra traduzida para dezenas de idiomas, mostra a relevância desses escritos para as leitoras e leitores contemporâneos.
Revela também que a tardia recepção do público brasileiro pode ser compensada pela experiência radical da leitura de textos que transitam entre a absoluta sinceridade e a engenhosa reinvenção.
Stefania Chiarelli é professora de literatura na Universidade Federal Fluminense e coorganizou o livro "Falando com Estranhos - O Estrangeiro e a Literatura Brasileira"
“Trilogia de Copenhagen”
• De Tove Ditlevsen
• Tradução: Heloisa Jahn e Kristin Lie Garrubo
• Companhia das Letras
• 392 páginas
• R$ 79,90
Trecho
“Digo que não quero um amante, pois não consigo trabalhar se minha vida se tornar confusa e complicada de novo. E percebo cada vez mais que a única coisa que realmente sei fazer e que me apaixona é formar frases, criar sequências de palavras ou escrever versos simples de quatro linhas. Para fazer isso, preciso observar as pessoas de um modo bem especial, mais ou menos com se as arquivasse para uso posterior.
Para fazer isso, também preciso ler de uma maneira bem específica, absorvendo com todos os meus poros aquilo que, de alguma forma nebulosa, me será útil, se não agora, em algum momento futuro. Para fazer isso, não posso ter muitas relações, nem sair demais ou beber álcool, porque aí não posso trabalhar no dia seguinte. E já que estou sempre formando frases da minha mente, tendo a ser absorta e distraída (...).”