Livros -  (crédito: Pixabay/Reprodução)

Livros

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Afonso Cruz

Porque não há muitos leitores

 

George Steiner diz, em “O silêncio dos livros”, que “a maior parte das pessoas não lê livros. Porém, canta e dança”. De facto, a literatura não nos faz dançar (sobre isto, Mario Quintana disse que não sabia dançar, a sua maneira de dançar era o poema) e não nos faz pular, cantar em uníssono e dificilmente move multidões.


Recorrentemente, aparecem pessoas a justificar a falta de leitura com outros entretenimentos que parecem bastante mais apelativos. Foi assim com a rádio, a televisão (nesse tempo, que era o da minha infância, também se culpava o “jogar à bola na rua”, por exemplo), e agora com a internet, as consolas de jogos e as plataformas de streaming.

 

A desculpa de que determinado entretenimento nos afasta da leitura sempre foi um argumento muito popular, mas falacioso. Os entretenimentos mudam, mas a vontade de ler continua a ser reduzida (a culpa não é da bola nem da televisão nem das consolas, é a própria natureza da leitura que não congrega multidões, e a única conclusão possível é que, se a maior parte do entretenimento é priorizado em relação à leitura, é porque a leitura não é cativante o suficiente).

 

 

É possível que uma pessoa que não tenha nada para fazer ou para se entreter prefira o aborrecimento à leitura, e, não raras vezes, vemos crianças a rebolarem-se ou a queixarem-se do enfado, mesmo que estejam rodeadas de livros.


Se a desculpa dos entretenimentos alheios é normalmente veiculada por leitores, os que não leem com assiduidade preferem a desculpa da falta de tempo, argumento que os amantes de livros ouvem com frequência e abominam. No entanto, “não é a falta de tempo que impede a leitura: é a falta de desejo”, diz Antonio Basanta.

 

Nem sempre é assim, claro, mas os leitores ouvem muitas vezes frases como “gostaria muito, mas não tenho tempo para ler”, “adoro ler, mas o trabalho não deixa”, “costumava ler, mas as responsabilidades agora são muitas”, etc.

 

Por vezes, estes argumentos são verdadeiros, mas, habitualmente, não passam de desculpas. Qualquer leitor apaixonado encontra um momento entre trabalhos e tarefas para abrir um livro, caminha enquanto lê, lê nos transportes, lê enquanto almoça, lê na casa de banho, lê antes de dormir.

 


Henry Miller, porém, desprezava esta maneira de ler, em que a concentração não é total. Se a leitura pode ser uma atividade exigente, para ele, devia sê-lo ainda mais, levada a cabo pausada e refletidamente. Essa postura suscitava reações idênticas às mencionadas acima, mas não apenas de quem não costuma ler, também de leitores (“não posso ler dessa maneira, tenho muitas responsabilidades”):

 

“É precisamente àqueles que falam assim que estas palavras se destinam. Quem receia negligenciar os seus deveres lendo vagarosa e ponderadamente, cultivando os seus próprios pensamentos, irá negligenciar os seus deveres de qualquer maneira, eu por motivos piores (...) Se a leitura de um livro nos agitar tão profundamente, a ponto de nos fazer esquecer as nossas responsabilidades, é porque estas últimas não têm grande significado para nós”.


A leitura é um processo lento e muitas vezes ciumento, possessivo. O livro pede a nossa atenção total e exclusiva. Outras atividades não têm tantos ciúmes e permitem-nos realizar várias ao mesmo tempo (cantarolar, dançar, pensar e cozinhar, por exemplo, podem coabitar na mesma pessoa e no mesmo espaço e tempo).

 

 

Muitas vezes, ler exige silêncio e recolhimento (precisamente a antítese de outras atividades lúdicas, talvez, aquelas de maior adesão) e tende a subtrair-se a qualquer gregarismo. A dedicação que um livro deseja para si tem uma gratificação menos imediata do que outras formas de fruição artística ou entretenimento.

 

Christian Bobin, em ‘Um vestido curto de festa’, vê assim essa contemplação a que a leitura parece obrigar-nos, dizendo que é “como rezar. Os livros são como rosários de tinta negra, cada conta rolando entre os dedos, palavra após palavra. E o que é realmente rezar? É silenciar-se. Afastar-se de si no silêancio”.


No entanto, apesar de a leitura ser claramente menos cativante para a maioria das pessoas do que outras formas de ócio, há quem ache, como Héctor Abad, que a literatura é contagiosa: “A literatura, como a peste e as religiões, contagia-se de pessoa para pessoa, e viaja oralmente, pelo ar, mas também alojada nessas extensões de memória e da voz humana a que chamamos livros”.


Mas, ao contrário da peste, é endémica (uma pandemia de leitura é implausível), circunscrevendo-se ao pequeno território constituído pelos leitores assíduos, propagando-se com parcimónia, preguiçosa e paulatinamente, escolhendo com serenidade a próxima vítima, que, com grande probabilidade, jamais se curará.

 


Os livros são seres pacientes. Imóveis nas suas prateleiras, com uma espantosa resignação, podem esperar décadas ou séculos por um leitor.

 

“O vício dos livros”
• De Afonso Cruz
• Dublinense
• 96 páginas
• R$ 59,90

 

Sobre o autor

 

O português Afonso Cruz nasceu em 1971, na Figueira da Foz. Além de escritor, é ilustrador, músico e cineasta. Publicou mais de trinta livros, entre romances, teatro, não ficção, ensaio, álbuns ilustrados, novelas juvenis e ainda uma enciclopédia inventada, que conta com sete volumes.

 

Colabora regularmente para jornais e revistas, e recebeu vários prêmios pelos seus livros, cujos direitos estão vendidos para mais de vinte idiomas. O trecho publicado nesta página é um dos capítulos da coletânea de ensaios “O vício dos livros”, que está em pré-venda no site da editora Dublinense.